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São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

Escritor espanhol, com obras lançadas em 44 países, lança "Seu Rosto Amanhã" e comenta sua obra

Marías imagina passado para criar presente

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há dez anos cravados, o espanhol Javier Marías publicou um ensaio batizado "Sete Razões para Não Escrever Romances e Apenas Uma para Escrevê-los".
Razões para não escrever são bem mais do que sete, mas motivos para talhar ficção pode-se concordar que não existam muitos além do quase óbvio "permite viver no reino do que podia ser e nunca foi", usado por ele no texto.
Javier Marías não é um escritor em busca do tempo perdido. Talvez seja dos tempos achados. Em seu mais recente romance, "Seu Rosto Amanhã", que a Companhia das Letras está publicando no Brasil, ele chega ao "reino do que poderia ter sido" por meio de um original futuro do pretérito.
A equação é complexa, como complexos são os livros desse romancista e ensaísta de 52 anos. Ele mesmo dá uma força, em entrevista por telefone à Folha.
Existe algo que o leitor não vê por trás do romance. Ao fim da Guerra Civil Espanhola, nos anos 30, o pai do escritor, o célebre filósofo madrileno Julian Marías, 89, foi delatado para a polícia franquista. "E por aquele que tinha sido seu melhor amigo."
A historieta, parodiada no livro, o levou a pensar nas coisas que o outro, esse desconhecido, é capaz de se transformar. Sem perder o fio: imaginou no episódio, no passado, os futuros possíveis.
Voilá. Essa chave, que ele reconhece estar embutida no seu "uma razão para escrever um romance", abre a porta de "Seu Rosto Amanhã". Nele, o escritor de Madri -e do mundo, com livros lançados, e premiados, em 44 países- conta uma história no presente, mas com raízes plantadas no passado.
Seu narrador, na Inglaterra de hoje, descobre com um professor aposentado -moldado à imagem e semelhança do veterano historiador Peter Russell, 90, seu amigo- um curioso grupo ligado ao serviço secreto britânico.
Eram espiões que combateram o nazismo tentando se precaver contra eventuais traidores, detetives que sabiam olhar no rosto de cada um seus amanhãs.
Parênteses sejam feitos, o ambiente histórico no qual Marías ancora esse "reino do que poderia ser" dá grande consistência à sua trama. Houve um tempo em que havia tantas delações que o governo britânico espalhou cartazes por toda a ilha com a inscrição "Careless Talk Costs Lives" (algo como "ser cuidadoso nas conversas salva vidas").
Marías é cuidadoso. No que escreve, sobretudo, e também na sua conversa. Isso não impede que ele faça à Folha uma generosa leitura dessa obra em relação às anteriores (quatro delas lançadas aqui pela editora Martins Fontes).
"Em "O Homem Sentimental", o narrador era um cantor de ópera que renuncia à sua própria voz e interpreta o que outros escreveram ou compuseram", diz. "Em "Todas as Almas", é um professor universitário que também renuncia à sua voz e transmite um saber que não é seu", prossegue.
Ele continua o "tour" com "Coração Tão Branco", cujo protagonista é um intérprete das Nações Unidas. E termina com o ótimo "Amanhã na Batalha Pensa em Mim", cujo narrador é um "ghost writer". "Mais uma vez alguém dando sua voz a serviço de outro." O presente romance, segundo ele, trata de um intérprete de histórias. "Jaime Derza [o protagonista do livro] é um tradutor de vidas. Ele busca saber como serão os rostos das pessoas amanhã. Sabemos os rostos de alguns hoje, mas nunca saberemos do que serão capazes no futuro."
O próprio Marías não tem o mesmo dom, que o seu personagem descobre compartilhar com os espiões antinazistas, mas já olha na obra de agora o seu amanhã. "Seu Rosto..." terá uma continuação, da qual ele já fez "uns 25%". Os dois livros formarão o "díptico" "Febre e Lança".
"Na verdade é o mesmo livro, só o dividi em duas partes porque não gosto de livros grossos." "De lombada larga, só leio Dickens", diz com risadas o ex-professor da Oxford University.


SEU ROSTO AMANHÃ. Autor: Javier Marías. Editora: Companhia das Letras. Tradutor: Eduardo Brandão. Quanto: R$ 45 (408 págs.).


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