São Paulo, segunda, 29 de dezembro de 1997.




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A metamorfose de El Niño quando nasce no sul

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

"O dever de todas as coisas é ser uma felicidade; se não são uma felicidade, são inúteis ou prejudiciais."
Esta frase de Borges merecia estar na memória nos dias de Natal, em que pessoas irritadas pelo calor e movimento das lojas tentavam reproduzir a 40 graus a festa do velhinho de barbas brancas que se desloca na neve, puxado por renas.
Dava pena vê-las enfurecidas a caminho da noite feliz, sonhando com o bimbalhar dos sinos no meio do caos de trânsito. Papais noéis fora do lugar, suas renas são enfurecidos motoristas de táxi com o palito entre os dentes, dizendo palavrões de derrubar chaminés.
Os pescadores peruanos têm razão. A chegada do El Niño significa que nasceu um Deus, morreu para nos salvar etc., mas, sobretudo, quer dizer que as águas vão esquentar, secas e tempestades assolam o mundo.
Os cubanos durante muito tempo proibiram as comemorações de Natal. Uma bobagem, como quase toda proibição. Mas a crítica que faziam de que se tratava de uma festa européia, algo que se passa na neve, ainda continua válida. O Natal foi comemorado este ano, em homenagem à visita do papa. Espero que a crítica sobreviva.
O conto de Mário de Andrade, "O Peru de Natal", é um marco na literatura brasileira. O baixo astral familiar vai se diluindo diante do perfume do peru e depois das primeiras garfadas a verdadeira festa começa. É como se um tempero subversivo se infiltrasse nas dobras daquela tristeza, a sensualidade derretendo a neve e suas renas.
Quando menino, escrevi um artigo contra o Dia das Mães. Segurei uma barra em casa. Mães já padecem de muitos males, imagine um artigo.
Esse Natal de sinos bimbalhando, de Papai Noel e aborrecimentos ocultos, colhidos em lojas superlotadas, cruzando um trânsito caótico e quase sempre um número maior ou menor -esse Natal não será eterno. Você pode trocá-lo, levando a nota.
Famílias sempre serão desse jeito -papai, mamãe, chinelos e bocejos. É o que dizem os conformistas. Mas a própria estrutura da família está mudando. Aumenta o número de casas com um só líder, de um modo geral a mulher.
Mudanças na família mudarão o Natal, embora a mídia, tão crítica diante de outros fenômenos de massa, entre de cabeça na conspiração que nos diz que seremos felizes esta noite, comprando esses presentes, comendo esse peru com abacaxi e brindando o vizinho com uma taça de vinho branco.
Aqui na região dos Lagos, vejo famílias ocupando hotéis na véspera de Natal. Isto era raro no passado. Centenas de milhares de pessoas vão acabar rompendo com esse encanto e reinventando sua noite.
Sei que leva tempo. Como força minoritária, tenho de ter paciência, deixar que cozinhem as castanhas, esperar. Esperar que a força do espírito se recupere e que a força do comércio se dedique a novas presas, assim teremos o Natal modesto da fé, e esse compra-compra de dezembro poderia se atenuar, alongando-se pelo ano.
Daqui a pouco, entra janeiro, todos duros. Quem sabe alguém se dá conta de que há caminhos alternativos. O dever de todas as coisas é ser felicidade. Podemos dizer isto da infinidade de presentinhos de Natal?



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