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A metamorfose de El Niño quando nasce no sul
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
"O dever de todas as coisas é
ser uma felicidade; se não são
uma felicidade, são inúteis ou
prejudiciais."
Esta frase de Borges merecia
estar na memória nos dias de
Natal, em que pessoas irritadas pelo calor e movimento
das lojas tentavam reproduzir
a 40 graus a festa do velhinho
de barbas brancas que se desloca na neve, puxado por renas.
Dava pena vê-las enfurecidas
a caminho da noite feliz, sonhando com o bimbalhar dos
sinos no meio do caos de trânsito. Papais noéis fora do lugar, suas renas são enfurecidos
motoristas de táxi com o palito
entre os dentes, dizendo palavrões de derrubar chaminés.
Os pescadores peruanos têm
razão. A chegada do El Niño
significa que nasceu um Deus,
morreu para nos salvar etc.,
mas, sobretudo, quer dizer que
as águas vão esquentar, secas e
tempestades assolam o mundo.
Os cubanos durante muito
tempo proibiram as comemorações de Natal. Uma bobagem, como quase toda proibição. Mas a crítica que faziam
de que se tratava de uma festa
européia, algo que se passa na
neve, ainda continua válida. O
Natal foi comemorado este
ano, em homenagem à visita
do papa. Espero que a crítica
sobreviva.
O conto de Mário de Andrade, "O Peru de Natal", é um
marco na literatura brasileira.
O baixo astral familiar vai se
diluindo diante do perfume do
peru e depois das primeiras
garfadas a verdadeira festa começa. É como se um tempero
subversivo se infiltrasse nas
dobras daquela tristeza, a sensualidade derretendo a neve e
suas renas.
Quando menino, escrevi um
artigo contra o Dia das Mães.
Segurei uma barra em casa.
Mães já padecem de muitos
males, imagine um artigo.
Esse Natal de sinos bimbalhando, de Papai Noel e aborrecimentos ocultos, colhidos
em lojas superlotadas, cruzando um trânsito caótico e quase
sempre um número maior ou
menor -esse Natal não será
eterno. Você pode trocá-lo, levando a nota.
Famílias sempre serão desse
jeito -papai, mamãe, chinelos
e bocejos. É o que dizem os
conformistas. Mas a própria
estrutura da família está mudando. Aumenta o número de
casas com um só líder, de um
modo geral a mulher.
Mudanças na família mudarão o Natal, embora a mídia,
tão crítica diante de outros fenômenos de massa, entre de
cabeça na conspiração que nos
diz que seremos felizes esta
noite, comprando esses presentes, comendo esse peru com
abacaxi e brindando o vizinho
com uma taça de vinho branco.
Aqui na região dos Lagos, vejo famílias ocupando hotéis na
véspera de Natal. Isto era raro
no passado. Centenas de milhares de pessoas vão acabar
rompendo com esse encanto e
reinventando sua noite.
Sei que leva tempo. Como
força minoritária, tenho de ter
paciência, deixar que cozinhem as castanhas, esperar.
Esperar que a força do espírito
se recupere e que a força do comércio se dedique a novas presas, assim teremos o Natal modesto da fé, e esse compra-compra de dezembro poderia se
atenuar, alongando-se pelo
ano.
Daqui a pouco, entra janeiro,
todos duros. Quem sabe alguém se dá conta de que há caminhos alternativos. O dever
de todas as coisas é ser felicidade. Podemos dizer isto da infinidade de presentinhos de Natal?
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