|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Pólvora do arcaísmo ainda espalha medo nos sertões
XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA
Muitos deles se modernizaram. De motos, em vez de
cavalos, alcançam o rastro das
suas presas, cabras marcados para morrer, e executam a encomenda. Atualíssima tragédia dos
sertões, como dizia um assombrado Euclydes da Cunha no início do século passado, a pistolagem ainda espalha a sua pólvora
do arcaísmo no ar.
Com a ajuda dos recursos da
antipsiquiatria dos anos 1970, a
socióloga cearense Peregrina Cavalcante realizou um estudo sofisticado sobre o comércio da morte
e seus arredores políticos e sociais. "Como se Fabrica um Pistoleiro" exibe a anatomia desse tipo
de "profissional".
O título tem como fonte "A Fabricação da Loucura", livro do antipsiquiatra inglês Thomas Szasz.
Em dois anos de estrada, nos rastros dos pistoleiros de aluguel no
Ceará, Piauí e Maranhão, a pesquisadora fez uma tocaia delicada
e arrancou deles suas motivações.
É impossível não sacar o nobre
clichê do "humano, demasiado
humano" ao ler os relatos.
Mas sem esquecer como se produz o fenômeno da pistolagem.
Na origem de tudo, a estrutura
fundiária. Meio palmo de uma
cerca de arame farpado que avança na divisão de uma propriedade
pode tombar cadáveres.
A arte de entrevistar sem susto e
sem preconceito -aqui está um
dos pontos elevados do livro- levou Peregrina, que conviveu com
os protagonistas a sangue frio, a
obter informações sobre a mentalidade dos matadores e o universo
desse tipo de crime que se arrasta
há séculos no Nordeste.
Neste ano mesmo, o vale do Jaguaribe, tradicional ponto da geografia da morte por encomenda,
voltou a registrar ocorridos do gênero no Ceará. Como na sua versão mais antiga, a pistolagem está
colada a um poder político que esgota com facilidade o debate.
Em uma das narrativas mais assombradas do livro, a autora
mostra o suspense em torno dos
"jurados de morte". São os personagens que entram nas listas dos
pistoleiros e passam a viver dia e
noite aquele drama. Nas pequenas cidades, eles são apontados
como seres em contagem regressiva e são motivo de curiosidade
de moradores. Mesmo em casos
que provocam alarde e denúncias
públicas sobre a possibilidade da
tragédia, a maioria dos crimes
ainda tem sido inevitável.
Mata-se na disputa de poder e
questões de terra, dados marcantes da origem da pistolagem, mas
a chamada honra, nos episódios
de vinganças de famílias, é sempre evocada na hora de apertar o
dedo no gatilho ou acertar, por algumas patacas, o fim do inimigo.
Como se Fabrica um Pistoleiro
Autora: Peregrina Cavalcante
Editora: A Girafa (SP)
Quanto: R$ 34 (254 págs.)
Texto Anterior: Livro: Socióloga constrói perfil dos "cabras" Próximo Texto: Música erudita: Produção nacional alcança panteão atual Índice
|