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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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CRÍTICA

Pólvora do arcaísmo ainda espalha medo nos sertões

XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA

Muitos deles se modernizaram. De motos, em vez de cavalos, alcançam o rastro das suas presas, cabras marcados para morrer, e executam a encomenda. Atualíssima tragédia dos sertões, como dizia um assombrado Euclydes da Cunha no início do século passado, a pistolagem ainda espalha a sua pólvora do arcaísmo no ar.
Com a ajuda dos recursos da antipsiquiatria dos anos 1970, a socióloga cearense Peregrina Cavalcante realizou um estudo sofisticado sobre o comércio da morte e seus arredores políticos e sociais. "Como se Fabrica um Pistoleiro" exibe a anatomia desse tipo de "profissional".
O título tem como fonte "A Fabricação da Loucura", livro do antipsiquiatra inglês Thomas Szasz. Em dois anos de estrada, nos rastros dos pistoleiros de aluguel no Ceará, Piauí e Maranhão, a pesquisadora fez uma tocaia delicada e arrancou deles suas motivações. É impossível não sacar o nobre clichê do "humano, demasiado humano" ao ler os relatos.
Mas sem esquecer como se produz o fenômeno da pistolagem. Na origem de tudo, a estrutura fundiária. Meio palmo de uma cerca de arame farpado que avança na divisão de uma propriedade pode tombar cadáveres.
A arte de entrevistar sem susto e sem preconceito -aqui está um dos pontos elevados do livro- levou Peregrina, que conviveu com os protagonistas a sangue frio, a obter informações sobre a mentalidade dos matadores e o universo desse tipo de crime que se arrasta há séculos no Nordeste.
Neste ano mesmo, o vale do Jaguaribe, tradicional ponto da geografia da morte por encomenda, voltou a registrar ocorridos do gênero no Ceará. Como na sua versão mais antiga, a pistolagem está colada a um poder político que esgota com facilidade o debate.
Em uma das narrativas mais assombradas do livro, a autora mostra o suspense em torno dos "jurados de morte". São os personagens que entram nas listas dos pistoleiros e passam a viver dia e noite aquele drama. Nas pequenas cidades, eles são apontados como seres em contagem regressiva e são motivo de curiosidade de moradores. Mesmo em casos que provocam alarde e denúncias públicas sobre a possibilidade da tragédia, a maioria dos crimes ainda tem sido inevitável.
Mata-se na disputa de poder e questões de terra, dados marcantes da origem da pistolagem, mas a chamada honra, nos episódios de vinganças de famílias, é sempre evocada na hora de apertar o dedo no gatilho ou acertar, por algumas patacas, o fim do inimigo.


Como se Fabrica um Pistoleiro
   
Autora: Peregrina Cavalcante
Editora: A Girafa (SP)
Quanto: R$ 34 (254 págs.)



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