São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

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AUDIOVISUAL/ANÁLISE

Começa a era das enciclopédias da TV

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A possibilidade de adquirir séries televisivas que até há poucos anos eram acessíveis somente no momento em que iam ao ar, ou em precárias gravações caseiras, aumenta o controle -e a exigência- do espectador.
De certa forma, coleções de programas editados em discos e comercializados em caixas com inúmeros episódios prefiguram arquivos de imagem em movimento, abertos à consulta universal, que a internet, em doses limitadas, já oferece. E que a TV digital interativa poderá potencializar.
A venda de seriados de TV em caixas de DVDs, por temporada, já está programada de antemão no momento da produção, o que implica uma longevidade que o programa de TV, no máximo transportado para uma frágil fita de vídeo por fãs aplicados, não costumava ter.
Além de atender o gosto de aficionados, a possibilidade de possuir coleções na estante, que podem ser consultadas pontualmente e em profundidade, a qualquer momento, valoriza também a produção de outros tipos de conteúdos televisivos: aqueles que se aproximam dos educativos e, com uma boa dose de saudável pretensão, poderão, quem sabe um dia, chegar a algo próximo das enciclopédias.
Nessa categoria se situa a recém-lançada caixa de "Um Pé de Quê?", série bem-humorada de programas apresentados por Regina Casé para a TV Futura. Os três discos, com cinco episódios cada um, trazem uma pequena mostra do inventário botânico-histórico-cultural que a Pindorama Filmes produz desde 2001.
Cada episódio de cerca de meia hora é dedicado a uma espécie característica da flora brasileira. O primeiro, e dos melhores, fala da sapucaia, árvore escolhida por D. Pedro 2º, a partir do relato quinhentista do viajante Fernão Cardim, para ornar o eixo monumental da Quinta da Boa Vista.
Ficamos conhecendo a espécie nativa, que produz flores cor-de-rosa, além de um tipo de castanha de que os macacos e os morcegos muito gostam. Apreciamos alguma semelhança e muitas diferenças entre a corte brasileira e a corte francesa, já que o imperador do Brasil, botânico amador, buscou, com sua escolha, um equivalente à altura das árvores plantadas em Versalhes, cujo modelo adaptou.
A primeira edição em DVD não contemplou o episódio sobre o pé de favela, a árvore característica do sertão do nordeste brasileiro, abundante na região de Canudos e que deu nome ao morro carioca onde os soldados remanescentes da última investida contra Antonio Conselheiro se instalaram após a "vitória". Esperamos para uma próxima esse programa, que recupera a origem da palavra que passou a designar os locais de moradia precária, de autoconstrução nas periferias das principais cidades brasileiras.
"Toda afirmação categórica e absoluta tem um fundo de inverdade", afirma Marta Vanucci, oceanógrafa, especialista em mangues, no episódio do disco 2 dedicado ao tema. A doutora, nascida na Itália, naturalizada brasileira e que atualmente vive na Índia, esclarece que o mangue é "um dos" e não "o" ecossistema mais produtivo do mundo.
A diferença é sutil, mas sintetiza o desafio que a TV deve enfrentar para se inserir nas redes de produção e circulação de conhecimento. "Um Pé de Quê?" explora essas fronteiras. O projeto é poderoso. A equipe dirigida por Estevão Ciavatta também.
O baixo padrão de produção prejudica a realização. Um visual mais caprichado valorizaria a criação, permitindo mais luzes e tonalidades.
Hoje cada um pode ter sua própria filmoteca. Algum incremento de produção aumentaria a força de intervenção em um ambiente saturado de habitats poluídos, rios transfigurados, esgotos que tomam conta das mais diferentes paisagens. E árvores que sobrevivem.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP

Um Pé de Quê
Lançamento:
Som Livre (R$ 68,90, em média)


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