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AUDIOVISUAL/ANÁLISE
Começa a era das enciclopédias da TV
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
A possibilidade de adquirir
séries televisivas que até há
poucos anos eram acessíveis somente no momento em que iam
ao ar, ou em precárias gravações
caseiras, aumenta o controle -e
a exigência- do espectador.
De certa forma, coleções de programas editados em discos e comercializados em caixas com inúmeros episódios prefiguram arquivos de imagem em movimento, abertos à consulta universal,
que a internet, em doses limitadas, já oferece. E que a TV digital
interativa poderá potencializar.
A venda de seriados de TV em
caixas de DVDs, por temporada,
já está programada de antemão
no momento da produção, o que
implica uma longevidade que o
programa de TV, no máximo
transportado para uma frágil fita
de vídeo por fãs aplicados, não
costumava ter.
Além de atender o gosto de aficionados, a possibilidade de possuir coleções na estante, que podem ser consultadas pontualmente e em profundidade, a qualquer momento, valoriza também
a produção de outros tipos de
conteúdos televisivos: aqueles
que se aproximam dos educativos
e, com uma boa dose de saudável
pretensão, poderão, quem sabe
um dia, chegar a algo próximo das
enciclopédias.
Nessa categoria se situa a recém-lançada caixa de "Um Pé de
Quê?", série bem-humorada de
programas apresentados por Regina Casé para a TV Futura. Os
três discos, com cinco episódios
cada um, trazem uma pequena
mostra do inventário botânico-histórico-cultural que a Pindorama Filmes produz desde 2001.
Cada episódio de cerca de meia
hora é dedicado a uma espécie característica da flora brasileira. O
primeiro, e dos melhores, fala da
sapucaia, árvore escolhida por D.
Pedro 2º, a partir do relato quinhentista do viajante Fernão Cardim, para ornar o eixo monumental da Quinta da Boa Vista.
Ficamos conhecendo a espécie
nativa, que produz flores cor-de-rosa, além de um tipo de castanha
de que os macacos e os morcegos
muito gostam. Apreciamos alguma semelhança e muitas diferenças entre a corte brasileira e a corte francesa, já que o imperador do
Brasil, botânico amador, buscou,
com sua escolha, um equivalente
à altura das árvores plantadas em
Versalhes, cujo modelo adaptou.
A primeira edição em DVD não
contemplou o episódio sobre o pé
de favela, a árvore característica
do sertão do nordeste brasileiro,
abundante na região de Canudos
e que deu nome ao morro carioca
onde os soldados remanescentes
da última investida contra Antonio Conselheiro se instalaram
após a "vitória". Esperamos para
uma próxima esse programa, que
recupera a origem da palavra que
passou a designar os locais de moradia precária, de autoconstrução
nas periferias das principais cidades brasileiras.
"Toda afirmação categórica e
absoluta tem um fundo de inverdade", afirma Marta Vanucci,
oceanógrafa, especialista em
mangues, no episódio do disco 2
dedicado ao tema. A doutora,
nascida na Itália, naturalizada
brasileira e que atualmente vive
na Índia, esclarece que o mangue
é "um dos" e não "o" ecossistema
mais produtivo do mundo.
A diferença é sutil, mas sintetiza
o desafio que a TV deve enfrentar
para se inserir nas redes de produção e circulação de conhecimento. "Um Pé de Quê?" explora
essas fronteiras. O projeto é poderoso. A equipe dirigida por Estevão Ciavatta também.
O baixo padrão de produção
prejudica a realização. Um visual
mais caprichado valorizaria a
criação, permitindo mais luzes e
tonalidades.
Hoje cada um pode ter sua própria filmoteca. Algum incremento de produção aumentaria a força de intervenção em um ambiente saturado de habitats poluídos,
rios transfigurados, esgotos que
tomam conta das mais diferentes
paisagens. E árvores que sobrevivem.
Esther Hamburger é antropóloga e
professora da ECA-USP
Um Pé de Quê
Lançamento: Som Livre (R$ 68,90, em
média)
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