São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DVD/CRÍTICA

Série é réquiem da mestiçagem brasileira

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu não sei para onde vou,/ pode até não dar em nada." A fala cantada do menino caipira, num dos últimos episódios de "O Povo Brasileiro", série para a TV a partir do livro homônimo do antropólogo e político Darcy Ribeiro (1922-1997) agora lançada em DVD, serve como comentário preciso sobre um país agora em crise de identidade, e é a síntese do que esse bom trabalho de divulgação representa.
De forma desavisada, por ser um programa do Brasil pós-industrial, pela idade do "apresentador" (ao gravar, Darcy já chegava ao fim da luta contra o câncer, optando por esperar a morte à beira da brisa marinha de sua casa em Maricá, no Rio), pelo tom fácil e pedagógico de vulgarização de uma tese que, ao surgir com Gilberto Freyre, foi revolucionária, a série termina por ser o réquiem da grande ideologia brasileira do século 20: a mestiçagem.
É que o tom grandiloqüente, quase profético, sobre esse povo-cruzamento de índios, negros e brancos que ainda se encontra nesse produto do ano 2000 já se achava, para usar uma boa expressão paulista, fora do seu lugar (no tempo). A mestiçagem, embora com olhos saudosos voltados para a praia do Brasil aristocrático que sobe a costa do Rio a Recife, foi a ideologia de um país que se industrializava velozmente e permitia uma grande mobilidade social -nunca antes e nunca depois igualada.
Como unir (numa idéia) e, ao mesmo tempo, manter as diferenças hierárquicas desse povo que se movia não só no território, mas na pirâmide de renda? Ora, a idéia de que os brasileiros somos todos mestiços, ao mesmo tempo que representa uma forma sofisticada de republicanismo, permitia, no reverso de sua moeda, a separação entre os socialmente "brancos" e os socialmente "negros".
Com o travamento do crescimento e da mobilidade social de meados dos anos 80 para cá, o giro em falso do presente deixa saudades de uma época que, ao menos, parecia compreensível.
Há muitas imagens de praia no programa de Isa Grinspum Ferraz, justamente quando o centro econômico do país se distancia desse litoral, em direção à grande "paulistânia caipira", que chega até onde o agronegócio alcança. E, nas intervenções de personalidades como Chico Buarque, Gilberto Gil e Paulo Vanzolini, telas coloridas como colchas de retalhos ao fundo, "metáfora" de uma sociedade brasileira com conforto de casa (grande?) de avó.
Na divisão que Darcy e a diretora fazem da sociedade brasileira em diferentes regiões geográfico-identitárias há lugar para São Paulo. Por conta mesmo de ter sido o resultado mais pujante do processo de industrialização brasileiro, não é gratuito que seja do ABC que saia o governo a projetar o fim "oficial" da mestiçagem.
Ocorre que toda ideologia, se traz a sua cota de farsa, também realiza o seu trabalho de promessa. Não há sonho republicano substituto melhor, nesse campo, no Brasil. Ao execrar a ideologia da mestiçagem pelo que ela tem de engodo, o governo e o movimento negro ameaçam jogar fora não só a água suja do banho, mas o bebê também.


O Povo Brasileiro
   
Distribuidora:
Versátil; R$ 60



Texto Anterior: Distribuidores não vêem problemas
Próximo Texto: Televisão: "O Homem do Sapato Branco" morre aos 78
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.