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MANUEL DA COSTA PINTO
O apocalipse moral de Tolstói
Em "A Sonata a Kreutzer", escritor russo faz apologia religiosa da extinção da espécie humana
CATILINÁRIA CONTRA o amor e
o casamento; prédica pela extinção da arte e da humanidade. É esse o conteúdo de uma das novelas mais perturbadoras de Tolstói:
"A Sonata a Kreutzer", recém-traduzida por Boris Schnaiderman.
Sob vários aspectos, é um livro tão
repulsivo quanto a imagem do sexo
que Tolstói insiste em pintar com
tosco moralismo. Ao mesmo tempo,
é prova de que a escrita romanesca
vive das próprias contradições.
"A Sonata a Kreutzer" tem intenções catequéticas. Ao final da vida, o
autor de "Ana Karênina" entrara em
crise religiosa, renunciando aos privilégios de nobre latifundiário e renegando toda arte distanciada do
povo. Esse retorno à simplicidade da
igreja primitiva e da vida camponesa
-tema da novela "Padre Sérgio" e
do ensaio "O Que É a Arte?" -mostram aqui seu caráter inquisitorial.
Na trama, o narrador viaja de trem
em companhia de um grupo que representa a moderna sociedade russa. Quando a conversa deriva para a
questão do divórcio, um dos personagens se apresenta como Pózdnichev -protagonista de um famoso
crime passional.
Tem início uma arenga na qual
este conta como o casamento,
que deveria tê-lo curado da devassidão, tornou-se um inferno cotidiano, culminando na desconfiança de
que a mulher o traía com um
violinista (ao lado de quem executara a sonata de Beethoven que dá título à novela).
Adultério e ciúmes são decorrência lógica do diagnóstico que
Pózdnichev faz da vida conjugal como "ligação suína" marcada pela
"excitação sistemática da luxúria":
conforme o desejo arrefece, diz ele,
os cônjuges caem num rancor que
nada mais é do que o "protesto da
natureza humana contra o animal
que a esmagava".
Tolstói define as esposas como
"prostitutas a prazo longo", contesta
a liberdade de escolha dos parceiros
e considera os métodos contraceptivos um instrumento bestializante. A
argüição, entretanto, é igualmente
chocante para mentes iluministas e
religiosos fundamentalistas.
Pózdnichev não prega em nome
dos valores familiares ou de uma
igreja conservadora. Seu cristianismo primitivo é revolucionário na
medida que tudo nega: em "A Sonata
a Kreutzer", música e adultério são
emblemas da concupiscência, de um
amor pela criatura à qual se contrapõe a lei do Criador.
Ocorre que, sendo a paixão um
obstáculo à lei, só resta a abstinência
absoluta, com a conseqüente extinção da raça: "Para que deve continuar a espécie humana? (...) De
acordo com todos os ensinamentos
religiosos, o fim do mundo há de
chegar um dia, e o mesmo ocorrerá
também, inexoravelmente, segundo
todos os ensinamentos científicos.
O que há para se estranhar, portanto, se o mesmo resulta da doutrina
moral?", pergunta Pózdnichev. Poucos ateus teriam uma imaginação
mais niilista do que o evangélico
Tolstói.
A SONATA A KREUTZER
Autor: Lev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (120 págs.)
Avaliação: ótimo
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