São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

O apocalipse moral de Tolstói

Em "A Sonata a Kreutzer", escritor russo faz apologia religiosa da extinção da espécie humana

CATILINÁRIA CONTRA o amor e o casamento; prédica pela extinção da arte e da humanidade. É esse o conteúdo de uma das novelas mais perturbadoras de Tolstói: "A Sonata a Kreutzer", recém-traduzida por Boris Schnaiderman.
Sob vários aspectos, é um livro tão repulsivo quanto a imagem do sexo que Tolstói insiste em pintar com tosco moralismo. Ao mesmo tempo, é prova de que a escrita romanesca vive das próprias contradições.
"A Sonata a Kreutzer" tem intenções catequéticas. Ao final da vida, o autor de "Ana Karênina" entrara em crise religiosa, renunciando aos privilégios de nobre latifundiário e renegando toda arte distanciada do povo. Esse retorno à simplicidade da igreja primitiva e da vida camponesa -tema da novela "Padre Sérgio" e do ensaio "O Que É a Arte?" -mostram aqui seu caráter inquisitorial.
Na trama, o narrador viaja de trem em companhia de um grupo que representa a moderna sociedade russa. Quando a conversa deriva para a questão do divórcio, um dos personagens se apresenta como Pózdnichev -protagonista de um famoso crime passional.
Tem início uma arenga na qual este conta como o casamento, que deveria tê-lo curado da devassidão, tornou-se um inferno cotidiano, culminando na desconfiança de que a mulher o traía com um violinista (ao lado de quem executara a sonata de Beethoven que dá título à novela).
Adultério e ciúmes são decorrência lógica do diagnóstico que Pózdnichev faz da vida conjugal como "ligação suína" marcada pela "excitação sistemática da luxúria": conforme o desejo arrefece, diz ele, os cônjuges caem num rancor que nada mais é do que o "protesto da natureza humana contra o animal que a esmagava".
Tolstói define as esposas como "prostitutas a prazo longo", contesta a liberdade de escolha dos parceiros e considera os métodos contraceptivos um instrumento bestializante. A argüição, entretanto, é igualmente chocante para mentes iluministas e religiosos fundamentalistas.
Pózdnichev não prega em nome dos valores familiares ou de uma igreja conservadora. Seu cristianismo primitivo é revolucionário na medida que tudo nega: em "A Sonata a Kreutzer", música e adultério são emblemas da concupiscência, de um amor pela criatura à qual se contrapõe a lei do Criador.
Ocorre que, sendo a paixão um obstáculo à lei, só resta a abstinência absoluta, com a conseqüente extinção da raça: "Para que deve continuar a espécie humana? (...) De acordo com todos os ensinamentos religiosos, o fim do mundo há de chegar um dia, e o mesmo ocorrerá também, inexoravelmente, segundo todos os ensinamentos científicos.
O que há para se estranhar, portanto, se o mesmo resulta da doutrina moral?", pergunta Pózdnichev. Poucos ateus teriam uma imaginação mais niilista do que o evangélico Tolstói.


A SONATA A KREUTZER
Autor:
Lev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (120 págs.)
Avaliação: ótimo


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