São Paulo, terça-feira, 29 de dezembro de 2009

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ARTIGO

Bartók é impulso de tradição que alcançou o século 21

Coleção de peças orquestrais do húngaro dirigidas com precisão por Pierre Boulez contribui para a correta avaliação da importância do compositor

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das estratégias maiores de crítica modernista aos padrões gastos da linguagem artística foi apelar para alguma forma de retorno à origem. Forma peculiar de tentar andar para frente com o carro em marcha a ré. Assim, Stravinsky não temeu compor essa obra maior do modernismo musical, "A Sagração da Primavera", fazendo referência a temáticas de sacrifício da Rússia pagã com seus rituais.
A história do soldado estava prenhe de "infantilismos musicais". Como se o arcaico e o infantil pudessem liberar um passado recalcado, inconsciente, que assombrava, com a força dos espectros, o presente reificado. Não são poucas as obras que se serviram conscientemente dessa estratégia.
Talvez seja no interior dessa problemática que devemos apreender a obra de um compositor que, aos poucos, é reconhecido como um dos músicos mais importantes do século 20: Béla Bartók. Durante muito tempo visto como apenas um caso mais bem-sucedido de músico "nacionalista" (principalmente se comparado a Sibelius, Dvorák, Villa-Lobos etc.), Bartók é, na verdade, o impulso fundamental de uma impressionante tradição húngara que atravessou o século 20 e alcançou o século 21.
Pensemos em nomes como György Ligeti, György Kurtág e Peter Eötvös. Trata-se de uma tradição que herdou de Bartók a capacidade se servir de regras e formas tradicionais de uma maneira tal que, ao final, elas acabam por destruir as funções que deveriam desempenhar. Maneira de operar rupturas que conservam, sem com isto produzir alguma forma de restauração neoclássica.
O fato é que a correta avaliação do lugar de Bartók na música do século 20 tem um grande aliado na coleção, lançada pela Deutsche Grammophon, de peças orquestrais compostas pelo compositor húngaro e dirigidas por Pierre Boulez.
Sobre a regência, dificilmente seria possível acrescentar um adjetivo que já não foi dito. A surpreendente precisão técnica de Boulez é capaz de deixar evidente a estrutura das peças, permitindo uma audição transparente que não deixa de explorar o estranhamento das soluções de Bartók em peças como "Música para Cordas, Percussão e Celesta", e "Concerto para Dois Pianos, Percussão e Orquestra".
Já as peças, quando apresentadas em conjunto, revelam o desenvolvimento de um compositor capaz não apenas de ter uma das mais impressionantes produções pianísticas da história da música, uma produção de música de câmara capaz de trazer inovações formais decisivas (pensemos, por exemplo, nos quartetos de cordas), mas também de saber se confrontar com o desafio de compor para grandes formações.
Nesse último caso, fica evidente, entre outras coisas, não apenas a segurança técnica de Bartók no uso de certos recursos da linguagem tonal mas em um contexto onde suas funções harmônicas foram totalmente revistas. Na verdade, as peças orquestrais mostram, claramente, o que significava para Bartók "retornar à origem".
Conhece-se bem o trabalho de Béla Bartók como etnomusicólogo. Durante anos, ele pesquisou e registrou o folclore eslavo, servindo-se desse material como elemento fundamental de seu processo composicional. No entanto, não deixa de ser interessante perceber como, em seus melhores momentos, o material "popular" entra como princípio de desestabilização da forma.
Ele traz estruturas rítmicas que quebram os ritmos tradicionais, modelos pentatônicos que quebram a organização tonal. Como se aquilo que vem da origem trouxesse, para o interior da grande forma, um princípio de desestruturação. Como se a origem não fosse o lugar onde encontramos as coordenadas seguras do originário, mas onde, ao contrário, encontramos a inquietude do que é insuficiente a si mesmo.
Nada menos natural do que a maneira com que a "naturalidade" do material popular habita a música de Bartók. Desta forma, ele forneceu uma das figuras maiores de uma estratégia modernista fundamental: retorna à origem para destruir as ilusões do originário.

VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP



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