São Paulo, terça-feira, 30 de janeiro de 2001

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Pós-feministas, as meninas do funk carioca só são submissas quando querem; loucas por status, "perdem a linha" por motos, celulares e roupas

Cultura popozuda

ERIKA PALOMINO
COLUNISTA DA FOLHA

Tá tudo dominado. As meninas do funk carioca tomam conta do Rio de Janeiro neste verão e espalham seu comportamento e seu estilo para muito além dos morros e domínios pancadões da cidade. São as popozudas; prepare-se, elas vieram para ficar.
Trata-se de uma das mais fortes subculturas fashion já vistas no país.
As popozudas saíram da zona norte e das favelas para, embaladas pelo som do funk, influenciarem até mesmo um nicho aparentemente oposto, o das patricinhas. "Este é o verão em que o funk está atravessando o túnel", diz o especialista Ivo Meirelles, líder do grupo Funk'n'Lata e defensor do gênero há 14 anos, referindo-se aos túneis que ligam Zona Norte à Zona Sul, no Rio.
Na linha de frente, essas meninas, que se autodenominam "cachorras", instalam um novo modelo feminino.
"É uma "nova mulher" em cena, pós-feminista, criada vendo Xuxa na TV, que não tem medo de homem nenhum, que não é nem um pouco submissa: ela decide quando, como, onde e com quem quer fazer sexo ("quebrar barraco") e ainda humilha o cara do "pau molão'", diz o antropólogo Hermano Vianna, autoridade na cultura musical do país. Melhor ainda: as popozudas "só são submissas quando querem ser ou quando é conveniente ser", completa Vianna.
"Dói, um tapinha não dói, só um tapinha", geme matreiramente a voz feminina do hit ecoado até mesmo por Paula Toller em seu show no Rock in Rio 3, quando apenas a menção da frase levantou a platéia. No mesmo evento, Fernanda Abreu se valeu de um megamix com a "etiquetinha", "Planeta Dominado".
A etiquetinha em questão é um fundamento. As popozudas se ligam em moda feito loucas e elegem como hype absoluto a Gang (citada nessa faixa e na da Kawasaki, em que se ouve: "Pode vir, meu bem, de Kawasaki e dinheiro no bolso", incluindo um "star tac baby e uma Honda bis"). E elas adoram mesmo uma moto ("dança da motinha, as popozudas perde (sic) a linha; "Dança da Motinha").
Mercenárias", como também se chamam, elas saem à caça de ascensão social, de alguns presentes e, pelo menos, uma boa carona depois do baile. "Quero tudo do bom e do melhor", diz a canção "Chapeuzinho Mercenária".
O look é sexy, claro, até não mais poder. Calças justíssimas, muito jeans, tops para deixar a barriga de fora e cabelón. Vi no Rio uma popozuda indo à praia com seu "tigrão": tamanco de salto de madeira, top tomara que caia por cima do sutiã cortininha, shortinho stretch sobre a tanga de lacinho. Na parte de trás do short, bem no bumbum, de um lado a inscrição "popo"; do outro "zuda". E com o caminhar, bem carioca, no saltão, o efeito era: "popo-zuda, popozuda". Debochada como ela só.
O dicionário "Aurélio" ainda não tem "popozuda". Tem popô, significando "nádegas", e "mina-popô", a partir de indivíduos originários da região do Grande Popô, na fronteira do atual Togo com a República do Benim, na África. As meninas do Grande Popô devem ter sido então as primeiras popozudas.
Inspirações infantis e levadas de marchinhas carnavalescas influenciam o funk das popozudas, que dispõe de difusão tão democrática quanto pede a zona franca que são subúrbios do Rio. As faixas saíram das coletâneas do clássico selo Furacão 2000, vendidas apenas em bancas de jornal do Rio, por telefone e pelo site www.furacao2000.com.br. Caíram também na rede, pelo Napster (digite "Furacao 2000" e aparecem pelo menos cem músicas na tela). A pirataria então come.
Hoje, não falta um hit popozudo em nenhuma festa hype de São Paulo ou Rio, muitas vezes acompanhados das tradicionais dancinhas com a mão no joelho. O primeiro crossover foi feito na glamourosa festa de lançamento do perfume da Forum, no Copacabana Palace, em dezembro, quando 40 segundos do hino "Popozuda", do DeFalla, deixaram os convidados passados. "Havia muitas popozudas e elas se sentiram homenageadas", garante a modelo Alexia Deschamps.
É isso mesmo. A cultura popozuda toma conta dos recantos mais sofisticados, de lojas mais chiques e exclusivas. É um praticamente um way-of-life.
Na literatura, as popozudas aparecem no livro "Inferno", de Patrícia Melo (Companhia das Letras), que relata o submundo de favelas, subúrbios e bailes. "Ele é forte, diria Marta, para as amigas, no dia seguinte, e, meu Deus, como beija bem. Um beijador e tanto. Ai, ai, suspiraria Marta, ansiosa por amar e adorar. Ela é linda. Ele tem olhos da cor do mar em dia de chuva. Ela é bem-feita de corpo. Ele é engraçado. Ela é alta. Ai, que beijo", é o início do romance de Reizinho e Marta.
Mas claro que aqui é a ficção. O desafio do funk no momento é dissociar sua imagem de violência e crime, segundo Ivo Meirelles. A filosofia é "dançar, dançar e dançar".
"Não sou profeta, mas arrisco um palpite", diz Hermano Vianna: "Estamos vivendo o nascimento de um tipo ainda não-identificado de nova sexualidade favelada (portanto matriarcal), que já ameaça se espalhar por toda a cidade e todo o país, no ritmo do atabaque do bass carioca". Vai, popuzuda.



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