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Pós-feministas, as meninas do funk carioca só são submissas quando querem; loucas por status, "perdem a linha" por motos, celulares e roupas
Cultura popozuda
ERIKA PALOMINO
COLUNISTA DA FOLHA
Tá tudo dominado. As meninas
do funk carioca tomam conta do
Rio de Janeiro neste verão e espalham seu comportamento e seu
estilo para muito além dos morros e domínios pancadões da cidade. São as popozudas; prepare-se, elas vieram para ficar.
Trata-se de uma das mais fortes
subculturas fashion já vistas no
país.
As popozudas saíram da zona
norte e das favelas para, embaladas pelo som do funk, influenciarem até mesmo um nicho aparentemente oposto, o das patricinhas. "Este é o verão em que o
funk está atravessando o túnel",
diz o especialista Ivo Meirelles, líder do grupo Funk'n'Lata e defensor do gênero há 14 anos, referindo-se aos túneis que ligam Zona
Norte à Zona Sul, no Rio.
Na linha de frente, essas meninas, que se autodenominam "cachorras", instalam um novo modelo feminino.
"É uma "nova mulher" em cena,
pós-feminista, criada vendo Xuxa
na TV, que não tem medo de homem nenhum, que não é nem um
pouco submissa: ela decide quando, como, onde e com quem quer
fazer sexo ("quebrar barraco") e
ainda humilha o cara do "pau molão'", diz o antropólogo Hermano
Vianna, autoridade na cultura
musical do país. Melhor ainda: as
popozudas "só são submissas
quando querem ser ou quando é
conveniente ser", completa Vianna.
"Dói, um tapinha não dói, só
um tapinha", geme matreiramente a voz feminina do hit ecoado
até mesmo por Paula Toller em
seu show no Rock in Rio 3, quando apenas a menção da frase levantou a platéia. No mesmo evento, Fernanda Abreu se valeu de
um megamix com a "etiquetinha", "Planeta Dominado".
A etiquetinha em questão é um
fundamento. As popozudas se ligam em moda feito loucas e elegem como hype absoluto a Gang
(citada nessa faixa e na da Kawasaki, em que se ouve: "Pode vir,
meu bem, de Kawasaki e dinheiro
no bolso", incluindo um "star tac
baby e uma Honda bis"). E elas
adoram mesmo uma moto ("dança da motinha, as popozudas perde (sic) a linha; "Dança da Motinha").
Mercenárias", como também se
chamam, elas saem à caça de ascensão social, de alguns presentes
e, pelo menos, uma boa carona
depois do baile. "Quero tudo do
bom e do melhor", diz a canção
"Chapeuzinho Mercenária".
O look é sexy, claro, até não
mais poder. Calças justíssimas,
muito jeans, tops para deixar a
barriga de fora e cabelón. Vi no
Rio uma popozuda indo à praia
com seu "tigrão": tamanco de salto de madeira, top tomara que
caia por cima do sutiã cortininha,
shortinho stretch sobre a tanga de
lacinho. Na parte de trás do short,
bem no bumbum, de um lado a
inscrição "popo"; do outro "zuda". E com o caminhar, bem carioca, no saltão, o efeito era: "popo-zuda, popozuda". Debochada
como ela só.
O dicionário "Aurélio" ainda
não tem "popozuda". Tem popô,
significando "nádegas", e "mina-popô", a partir de indivíduos originários da região do Grande Popô, na fronteira do atual Togo
com a República do Benim, na
África. As meninas do Grande Popô devem ter sido então as primeiras popozudas.
Inspirações infantis e levadas de
marchinhas carnavalescas influenciam o funk das popozudas,
que dispõe de difusão tão democrática quanto pede a zona franca
que são subúrbios do Rio. As faixas saíram das coletâneas do clássico selo Furacão 2000, vendidas
apenas em bancas de jornal do
Rio, por telefone e pelo site
www.furacao2000.com.br. Caíram também na rede, pelo Napster (digite "Furacao 2000" e aparecem pelo menos cem músicas
na tela). A pirataria então come.
Hoje, não falta um hit popozudo em nenhuma festa hype de São
Paulo ou Rio, muitas vezes acompanhados das tradicionais dancinhas com a mão no joelho. O primeiro crossover foi feito na glamourosa festa de lançamento do
perfume da Forum, no Copacabana Palace, em dezembro, quando
40 segundos do hino "Popozuda",
do DeFalla, deixaram os convidados passados. "Havia muitas popozudas e elas se sentiram homenageadas", garante a modelo Alexia Deschamps.
É isso mesmo. A cultura popozuda toma conta dos recantos
mais sofisticados, de lojas mais
chiques e exclusivas. É um praticamente um way-of-life.
Na literatura, as popozudas
aparecem no livro "Inferno", de
Patrícia Melo (Companhia das
Letras), que relata o submundo de
favelas, subúrbios e bailes. "Ele é
forte, diria Marta, para as amigas,
no dia seguinte, e, meu Deus, como beija bem. Um beijador e tanto. Ai, ai, suspiraria Marta, ansiosa por amar e adorar. Ela é linda.
Ele tem olhos da cor do mar em
dia de chuva. Ela é bem-feita de
corpo. Ele é engraçado. Ela é alta.
Ai, que beijo", é o início do romance de Reizinho e Marta.
Mas claro que aqui é a ficção. O
desafio do funk no momento é
dissociar sua imagem de violência
e crime, segundo Ivo Meirelles. A
filosofia é "dançar, dançar e dançar".
"Não sou profeta, mas arrisco
um palpite", diz Hermano Vianna: "Estamos vivendo o nascimento de um tipo ainda não-identificado de nova sexualidade
favelada (portanto matriarcal),
que já ameaça se espalhar por toda a cidade e todo o país, no ritmo
do atabaque do bass carioca". Vai, popuzuda.
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