São Paulo, terça-feira, 30 de janeiro de 2001

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Misto de clássico com funcionalismo moderno, o estilo fascista se difunde ao buscar glória e poder

O fascismo e a moda

RUTH LA FERLA
do "The New York Times"

Postadas como sentinelas perto da porta da loja de Helmut Lang no SoHo, há três maciças águias de madeira. Magistrais e ao mesmo tempo ameaçadores, esses símbolos sombrios do poder imperial talvez pareçam menos apropriados para uma butique do que para as arenas de "O Gladiador". Lang diz que não assistiu a esse hino ao heroísmo da Antiguidade romana, com seu aceno visual a "O Triunfo da Vontade". Mas, em vista do crescente fascínio demonstrado pelo mundo da moda com os emblemas da força e da dominação, sua decoração parece prever o futuro.
A estética bruta do fascismo -um misto de estilo clássico e funcionalismo moderno proposto pelos regimes totalitários do século 20- é amplamente difundida hoje em dia, tendo aberto o caminho dos mundos da arquitetura e da fotografia de moda para o cinema e as passarelas.
"Gladiador", o revival do gênero toga e sandálias criado por Ridley Scott, foi um dos grandes sucessos do verão e deixou sua marca claramente gravada nos desfiles das coleções de primavera 2001, nos quais túnicas jônicas e dóricas, peitos de armas e torsos envoltos ou amarrados em panos foram expostos como o ápice do chique.
Conscientemente ou não, estilistas de vanguarda como Lang, Tom Ford e Nicolas Ghesquiere tiraram muitas de suas idéias do estilo abertamente decadente do filme. Outros, incluindo Miuccia Prada e Miguel Adrover, se inspiram em fontes mais contemporâneas, desfilando em suas passarelas uma procissão de uniformes com ar ameaçador de Estado policial.

Fascismo sexy
Tapa na cara das convenções, é evidente que o flerte da moda com o fascismo foi destituído de seu conteúdo político mais sombrio. Mesmo assim, o estilo pesado identificado com a tirania conserva um poder de sedução. "Fascismo -eu odeio, mas não deixa de ser sexy", disse Ned Cramer, editor sênior da revista "Architecture". Para ele, o estilo como um todo é atraente. "Expressa a idéia de tomar e depois abrir mão do controle."
Durante décadas após a Segunda Guerra Mundial, a estética associada aos regimes fascistas europeus -os edifícios neoclássicos, as roupas de couro típicas das tropas de assalto da Alemanha nazista, os corpos musculosos- foi alvo de críticas e repúdio. Ela representava o emblema desagradável da força e da repressão. Desde a década de 1970, porém, elementos desse look aparecem periodicamente no mainstream, destituídos de ideologia declarada, mas tirando dela uma espécie de glamour. A estética estava presente no filme "O Porteiro da Noite", de 1974, sobre um caso de amor sadomasoquista entre um ex-oficial da SS e uma sobrevivente de um campo de concentração, e também nas fotos de moda feitas por Bruce Weber nos anos 70, de jovens atletas exageradamente musculosos.
Em seu ensaio "Fascinating Fascism" (Fascismo Fascinante), de 1974, Susan Sontag sugeriu que o apelo da estética na época se devia à maneira como equacionava força bruta com sexualidade. "Para os nascidos após os anos 1940, o fascismo representa o exótico e o desconhecido", escreveu Sontag. Ela enxergou um "erotismo petrificado" no "acúmulo maciço e cego de material" que caracteriza uma certa arquitetura.
Ninguém ousaria sugerir que estilistas contemporâneos como Lang ou Prada ou cineastas como Ridley Scott tenham tendências políticas fascistas. Apesar disso, o estilo agressivo do totalitarismo conserva seu poder de sedução porque "descende de uma linhagem de escuridão", disse Yeohlee Teng, estilista nova-iorquina que incluiu em sua coleção de outono formas triangulares e costuras enviesadas inspiradas na geometria contundente das salas de convenções da era de Mussolini que viu na Itália. Estruturas brutais de granito e travertino, o método de propaganda favorito do ditador, "dizem respeito a poder", afirmou Teng, "e o poder é o maior afrodisíaco".
As propriedades afrodisíacas do poder foram reconhecidas por Sylvia Plath em seu poema ainda perturbador, "Daddy", dos anos 1950: "Toda mulher adora um fascista / A bota pisando no rosto, o bruto / Bruto coração de um bruto como você".
As palavras encontram ressonância em Daphne Merkin, autora da antologia "Dreaming of Hitler". Como disse Merkin, o flerte mais recente com a estética fascista "aponta para uma atração sexual subvertida". Acrescentou: "Demonstra que estamos nos afastando da sensualidade maleável", em direção a algo mais áspero: "Que não vivemos um momento culturalmente dócil".
No universo do estilo, não faltam elementos que confirmam essa afirmação. Alguns críticos e arquitetos dizem que, nos últimos anos, descobriram uma beleza robusta em colossos antes desprezados, como o Stadio dei Marmi, um estádio de corrida construído em 1937, que faz parte do Foro Itálico, um grande complexo esportivo romano erguido a pedido de Mussolini.
Os admiradores do modo monumental incluem Carla Fendi, da casa de moda italiana Fendi, que há muito tempo vem colecionando pinturas da Scuola Romana da década de 1930, retratando temas clássicos em ambientações contemporâneas. "Sempre senti forte atração por essa estética, e ela moldou minha visão da moda, sem falar na minha visão da arte e da arquitetura", disse Fendi.

Look brutal
A nova megaloja de Giorgio Armani em Milão fica num prédio de 1937 projetado por Enrico Griffini, importante proponente da arquitetura fascista. Também Miuccia Prada é tão apaixonada pelo look brutal em edifícios -favorecido por totalitaristas de direita e também de esquerda- que, durante os desfiles das últimas coleções em Paris, em outubro último, promoveu uma festa na imponente sede em estilo stalinista do Partido Comunista francês.
Os ingleses tampouco se mostram indiferentes aos estilos com tonalidades imperiais. Uma empresa britânica, a Erith & Terry, fez uma proposta de um redesenho hipotético do Lincoln Center de Nova York. A parte central seria formada por um teatro de ópera com aparência de templo romano.
No clima de ostentação desvairada de hoje, uma estrutura pomposa como essa poderia encontrar compradores, disse Michael Sorkin, diretor do programa de design urbano da City University de Nova York. "O estilo fascista exibe uma grandiosidade que se casa bem com uma era de prosperidade grande e mal distribuída", disse Sorkin. "Estamos vivendo a idade adulta da juventude de Reagan. Acho que as pessoas que cresceram nessa era estão trazendo seu gosto junto."
A predileção pelo bombástico, associado ao estilo imperial, pode ser vista também na obsessão de longa data com corpos malhados. Os corpos musculosos e traços finamente esculpidos exaltados por fotógrafos como Herb Ritts e Bruce Weber sugerem uma ampla gama de influências, algumas delas clássicas, outras homoeróticas e outras, ainda, que fazem referência indireta ao estilo heróico propugnado pelo Terceiro Reich. O catálogo da retrospectiva Giorgio Armani que está em cartaz no museu Guggenheim inclui a foto feita por Herb Ritts de um nu masculino com cabelo ondulado e torso musculoso, que poderia ter descido diretamente de um pedestal no Stadio dei Marmi.

Super-heróis
Garotos de fazenda e atletas musculosos são, há muito tempo, um dos elementos básicos da fotografia de Bruce Weber, que tem uma dívida com os heróis e guerreiros olímpicos filmados por Leni Riefenstahl, a glamourosa propagandista de Hitler. Riefenstahl, que tem 98 anos hoje, é tema de vários livros e filmes novos, além de ser objeto de um fascínio que praticamente a transformou em figura cult. "Leni Riefenstahl - Five Lives", uma coletânea de fotos e imagens de filmes, publicada em novembro pela editora Taschen. Jodie Foster planeja uma biografia filmada.
"O Triunfo da Vontade", o documentário de Riefenstahl sobre uma manifestação do partido nazista em que milhares de adeptos saudaram o Fuehrer, coloriu a visão de Arthur Max, designer de produção de "Gladiador". Numa entrevista que concedeu, Max reconheceu ter emprestado idéias das imagens de bandeiras e faixas nazistas produzidas por Riefenstahl.
Mas sua fonte principal foi a própria Roma imperial, conforme filtrada pelos olhos de pintores do século 19, como sir Lawrence Alma-Tadema. "Quando se fala no Império Romano, fala-se no berço do fascismo", disse Max, acrescentando que o casamento dos estilos clássico e totalitário do século 20 conferiu ao filme "um tipo de romantismo que, ao mesmo tempo, era decadente".
O look heróico em escala superlativa do filme, evidenciado em colunas fálicas, vestes pendentes e monumentos augustos, mostrou ser fonte de atração fatal para os criadores de moda, que desfilaram os totens dos estilos fascistas nas passarelas neste outono.
Imagens ligadas a gladiadores contribuíram para a primeira coleção de Tom Ford para a Yves Saint Laurent. O estilista lança vestidos em estilo túnica romana, presas ao torso com faixas pretas rígidas. Panos amarrados e caindo em dobras também são as marcas de destaque de provocadores, como Ghesquière, que expõe vestidos greco-romanos em sua coleção para a Callaghan, e Karl Lagerfeld, cujos looks caídos em dobras da Fendi são presos implacavelmente por cintos de bronze.

Mulheres atletas
O chique viril dá o tom dominante na coleção da Prada, em que as jaquetas de uniforme lembram, curiosamente, as imagens do documentário feito por Riefenstahl sobre as Olimpíadas de 1936 em Berlim, "Olympia", que captou mulheres atletas marchando para o estádio, usando uniformes sóbrios e severos.
Em sua coleção de verão, Miguel Adrover traz modelos usando camisas marrons coladas ao corpo. Ele se apressou em observar que seu corte militar foi inspirado não nos nazistas, mas nos uniformes dos escoteiros norte-americanos.
Embora suas coleções estejam repletas de referências não apenas à Roma clássica, mas ao "bondage", a maioria dos estilistas reluta em reconhecer a influência da estética fascista. Helmut Lang, cujos modelos percorriam as passarelas usando tiras de couro e bandagens, prefere descrever suas referências sutilmente totalitárias como "clássicas".
"Sim, evoluíram de um estilo romano de amarração", admitiu. "Sim, o estilo era extremamente restritivo."
Em alguns dos desfiles desse outono, o look brilhoso do classicismo filtrado por uma lente fascista chegou até os cabelos das modelos. As modelos na passarela de John Bartlett ostentavam cortes rigidamente geométricos e moldados rente às cabeças. "A idéia era criar um visual de precisão e força totais", explicou Peter Gray, do Vidal Sassoon, o cabeleireiro usado por Bartlett. "Não gosto de garotas estilo menininha. Mas curto a idéia de uma dominatrix."
A questão que vai pairar eternamente sem resposta sobre a carreira de Leni Riefenstahl -pode uma estética ser inteiramente divorciada de uma ideologia odiosa?- também pode ser formulada com respeito ao fascínio atual pelo fascismo. "Acho tudo isso altamente subversivo e assustador", disse David Wolfe, diretor criativo da consultoria de moda Doneger Group. Wolfe revelou que não vê nada de inspirador ou redentor no desfile de uniformes e looks fetichistas que marca este verão 2001.
Mas Valerie Steele, curadora-chefe e diretora em exercício do museu do Instituto de Tecnologia da Moda, observou maneiras pelas quais os "empréstimos" mais recentes solaparam a imagem do poder monolítico. Para ela, trata-se mais de "Mad Max" do que de "O Triunfo da Vontade".
"Couro, bustiês, tiras e pedaços que se amarram, como a armadura de gladiadores -tudo isso expressa uma coisa primitiva, tipo bárbaro/rebelde", opinou. "É a imagem do excluído, do rebelde contra um mundo cheio de perigos. É isso que a diferencia da estética direta e puramente fascista."

Tradução de Clara Allain



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