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São Paulo, quinta-feira, 30 de janeiro de 2003

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TEATRO

"LONGA JORNADA..."

Montagem tem estréia amanhã para o público no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo

Peça reitera valor da leitura na criação

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Sergio Britto e Cleyde Yáconis em ensaio para "Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro", que estréia no CCBB paulistano



Cleyde Yáconis e Sergio Britto embrenham-se em nevoeiro de melancolia, desespero e culpa

Reunida pela primeira vez, dupla de veteranos protagoniza "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro"



VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A certa altura, a tristeza no ar é tanta que dá para cortá-la com faca, como sugere um dos personagens. Contudo, ainda haverá muito por ser percorrido nas duas horas e quarenta e cinco minutos em dois atos do processo de desconfiguração dos Tyrone, a família protagonista da peça "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro", a obra-prima de Eugene O'Neill e um clássico da literatura norte-americana.
Atores da velha guarda do teatro brasileiro (das décadas de 40 e 50), respectivamente das escolas do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), a companhia paulista, e do Teatro dos Sete, carioca, Cleyde Yáconis e Sergio Britto, ambos com 79 anos, chegam ao final de cada sessão com fôlego invejável, como se verá na montagem que pré-estréia hoje em São Paulo, no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), vinda de temporadas no Rio de Janeiro e em Brasília.
Yáconis passa praticamente o tempo todo em cena, involuindo em sua Mary, a matriarca que, no tempo ficcional, começa na casa dos 70 anos e vai retrocedendo até os 16, como calcula a atriz, em consequência da morfina.
O corpo prostrado, quando amanhece na casa de verão, é metamorfoseado aos poucos e culmina, na madrugada, com a aurora da vida e a loucura da mesma Mary, papel que valeu a Yáconis indicação recente ao Prêmio Shell de melhor atriz no Rio.
"O nevoeiro não me incomoda. Gosto dele. Ele te esconde do mundo, e o mundo de você. Ninguém mais pode nos alcançar ou tocar", diz a mãe autobiográfica gestada por Eugene Gladstone O'Neill (1888-1953), morfinômana desde que o médico lhe injetou a droga para cessar as dores no parto de Edmund (Marco Antônio Pâmio), o caçula.
Esse episódio, desterrado do passado, expõe ainda mais o drama familiar cujo retrato é completado pela melancolia do primogênito Jamie (Genézio de Barros), um alcoólatra, e pela avareza do patriarca James (Britto), um ator viciado em um único personagem de sucesso fácil.
Na direção do espetáculo "até comportado, sem invencionices", Naum Alves de Souza, 60, afirma apoiar-se na tradição do texto e na excelência do ator.
"Quando a Mary fala em nevoeiro, não surge um nevoeiro. Fica a metáfora do autor, tão boa que não tenho o direito de estragar", diz o diretor.
Escrita em 1941 e encenada pela primeira vez em 1956, três anos após a morte de O'Neill, "Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro" é uma peça essencialmente autobiográfica.
O'Neill é o caçula dessa história. Seu pai foi ator na Broadway. Sempre teve problemas com o irmão alcoólatra. A relação com a mãe foi igualmente tempestuosa. Não à toa, Nelson Rodrigues era seu leitor contumaz.
Considerado o primeiro autor "sério" da Broadway, O'Neill introduziu a classe trabalhadora e o negro no teatro. Foi o principal autor da Grande Depressão nos EUA, deflagrada em 1929, estilhaçando o sonho americano.
"Ele fez de "Longa Jornada..." uma peça monumental com uma escrita absolutamente simples", afirma Souza.

Importância da palavra
Yáconis e Britto, que atuam juntos pela primeira vez (feita exceção aos teleteatros da extinta TV Tupi, nos anos 50), são devotos do verbo, jamais saltam a chamada leitura de mesa na criação de um espetáculo. A palavra sempre teve importância no trabalho da atriz.
Em 1976, durante o ensaio de uma peça, Yáconis dava uma entrevista na platéia quando o jornalista se queixou do "blablablá", da "falta de modernidade" nas falas que se ouvia de Paulo Autran no palco naquele momento. A atriz arrancou-lhe o bloco de anotações. "Você está há uma hora me entrevistando, usando a palavra, e vem criticar um colega meu por isso? Volte depois para me entrevistar de forma moderna, sem palavra", esbravejou.
"A palavra continua viva", diz Yáconis.
"Não fizemos nenhum laboratório cavernoso. Eu os prendi na mesa durante meses", diz Souza. No teatro, laboratório designa exercícios em que atores buscam seus personagens.
"Hoje, faz-se teatro como se faz televisão", diz Britto. "Os atores se acostumam a resolver tudo rápido, não lêem, não pensam. Se é para chorar, choram; para rir, riem; para debochar, debocham. Fazem só a ação do verbo, mas sem brilho."
A encenação de "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro" atém-se ainda aos diálogos cortados por silêncios ou pelo agudo da música incidental que sublimam o desespero de Mary, do marido James e dos filhos Jamie e Edmund.
Nesse abismo, o contraponto se dá pela empregada Catheleen, à margem do desprezo e do amor incondicionais, paradoxalmente mútuos.
A mãe, entorpecida pela morfina, reclama as dores de um casamento frustrado. "Consegui atingir uma delicadeza rara no papel; eu, uma atriz de natureza violenta, visceral", afirma Yáconis.
O marido, de origem humilde, é condenado a interpretar a montagem popular de "O Conde de Monte Cristo", na Broadway, por anos a fio; quanto mais ganhou dinheiro na vida, mais a avareza e a pobreza de espírito.
Jamie, o primogênito, chafurda no uísque e escarnece do caçula, cujo nascimento teria levado a mãe à droga. No círculo vicioso das culpas, Edmund sofre de tuberculose, tenta escapar do turbilhão familiar como poeta e escritor, mas aquela passagem pela casa de verão, antes do sanatório, poderá condená-lo de vez à doença -ou à cura, sabe-se lá.

LONGA JORNADA DE UM DIA NOITE ADENTRO. De: Eugene O'Neill. Tradução: Barbara Heliodora. Com: Cleyde Yáconis, Sergio Britto e outros. Onde: CCBB (r. Álvares Penteado, 112, SP, tel. 0/xx/11/3113-3651). Quando: pré-estréia hoje, para convidados; estréia amanhã, às 19h30; de qui. a dom., às 19h30. Quanto: R$ 15. Até 9/3. Patrocinador: Banco do Brasil.


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