São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Um barão no meu destino


Obama tem um cara que lhe escreve discursos; tem 27 anos, não deve saber quem foi o barão


NÃO FOI A melhor coisa da minha vida -se é que isso realmente existiu. Tinha 20 anos, sabia latim, recitava Horácio e Ovídio de cor, mas não sabia que bonde tomar. Até que tomei um mais ou menos por acaso e até certo ponto fiquei muito tempo viajando nele.
Deu-se que o pai encontrou, numa missa de sétimo dia, o secretário-geral do Ministério do Trabalho, que estreava seu novo prédio na avenida Antônio Carlos, onde até hoje parece que está.
Conversa vai, conversa vem, o sujeito reclamou da má qualidade dos funcionários que herdara da administração anterior. Não tinha ninguém capaz de escrever um memorando, uma simples carta. Perguntou ao pai se conhecia alguém disposto a trabalhar com ele.
Evidente que a oportunidade foi aproveitada. O pai disse que tinha um filho assim assim, etc. e tal, marcaram uma entrevista minha com a autoridade e no dia seguinte lá fui eu, saber em que poderia ser útil, não para o Estado ou para o secretário, mas para mim mesmo.
Uma recepcionista olhou-me surpreendida, o que um cara como eu podia querer com funcionário tão alto. E ficou mais surpreendida quando o chefe dela mandou que eu entrasse logo.
O homem estava atrás de uma imensa mesa cheia de papéis, o retrato obrigatório de Getúlio Vargas na parede principal. Retrato que seria retirado pouco depois, mas colocado de volta ao som da marchinha cantada por Francisco Alves, o rei da voz -"Bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar".
O sujeito já tinha informações a meu respeito, o pai devia ter dito que eu era um gênio, sabia latim e grego etc. etc. etc. O que o camarada queria era um redator que escrevesse por ele os despachos rotineiros e, eventualmente, um discurso ou parecer mais caprichado. Exigia, porém, um teste. Eu devia trazer no dia seguinte um texto, um discurso fictício, sugeriu o tema, um político que ia tomar posse como prefeito do então Distrito Federal. Dava-me liberdade quanto ao tamanho, só me pediu que não fizesse citações em latim ou grego.
Fui para casa, estava lendo a obra completa de Zola, acabara havia pouco o "La Curée", que o tradutor português transformou em "O Regabofe". O assunto era a modernização de Paris, que deixava de ser a aldeia medieval e se tornava a cidade mais bonita do mundo, graças ao empenho do barão Haussmann. Com este ponto de partida, caprichei em três laudas um discurso anunciando uma nova era para a capital do país. Mostrei ao pai, que achou ótimo, mas corrigiu duas correlações de tempo.
Levei o discurso ao ministério, o sujeito não me atendeu, pediu que eu o deixasse com a recepcionista. Mais tarde me telefonaria. Nunca me telefonou. Passaram-se semanas, eu já tinha um bico no "Jornal do Brasil" e como repórter de setor fui cobrir a posse do novo prefeito, um engenheiro muito conceituado, que por sinal fez uma boa administração, embora sem destruir uma cidade que já fora modernizada por Pereira Passos.
O presidente do Senado Federal apresentou o novo prefeito e deu-lhe a palavra. Logo no primeiro trecho do seu discurso, ele falou no barão Haussmann e na epopeia que foi a construção de uma cidade com grandes avenidas e perspectivas. Levei um susto. Pouco a pouco fui reconhecendo o meu texto, com ligeiras modificações de circunstância.
Fiquei espantado, à noite falei com o pai, ele, sim, ficou furioso, ameaçou tomar providências, que ele sempre tomava, fossem quais fossem, tivesse ou não habilitação, mandato ou competência para tomar providências. Ele afinal descobriria o fio da meada: o tal secretário do Ministério do Trabalho era cunhado do novo prefeito. Tinha a fama de ser o redator dos discursos de seu ministro, que por sinal era uma toupeira.
O que eu não sabia, naquela ocasião, é que traçara em parte o meu destino. A partir do barão Haussmann e das maravilhas feitas na Paris no Segundo Império, habituei-me a escrever discursos para os outros. Fiquei sabendo agora que o presidente Obama tem um cara que lhe escreve os discursos. Tem 27 anos, não deve saber quem foi o barão. Nem precisa, desde que faça um discurso anunciando que as tropas americanas no Iraque voltarão para casa.


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