São Paulo, sábado, 30 de abril de 2005

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ARQUITETURA

Projetista idealiza Casa de Música da cidade portuguesa

"Monstro de concreto" de Koolhaas "cai" sobre o Porto

EDWIN HEATHCOTE
DO "FINANCIAL TIMES"

Rem Koolhaas gosta da feiúra. Sua criação mais recente, a Casa de Música do Porto (Portugal), é um monstro. Uma lixeira prismática que dá a impressão de ter caído de supetão sobre a cidade, amassando o trabalho paisagístico de pedra que o cerca. Não se sabe bem como, mas a obra não é apenas inofensiva -é brilhante.
A Casa de Música não é tão radical quanto sua forma bruta quer fazer crer. Seu centro é formado por um auditório em formato tradicional, de caixa de sapatos -embora seja uma caixa maltratada, cheia de furos e com decoração kitsch-, e os outros espaços são empilhados em volta dele e envoltos numa pele de concreto.
Koolhaas começou no cinema, como roteirista, e sua abordagem eclética e cinematográfica se evidencia em espaços que dão a impressão de ter sido editados, roteirizados e acompanhados de evidências, embora evitem ao máximo fazer qualquer narrativa.
Em alguns pontos o edifício lembra o monolítico museu Whitney, construído por Marcel Breuer em Nova York, em outros, a fragmentação angular do "Gabinete do Dr. Caligari", ou até mesmo sua antítese arquitetônica, a belíssima Filarmônica de Berlim de Hans Scharoun.
A sala de concertos, propriamente dita, parece funcionar bem. Koolhaas introduziu uma série de rupturas e viradas que subvertem e entretêm a todo nível. Entre elas estão as imensas janelas de painéis de vidro ondulado. Algumas dão vista para a cidade, outras, para espaços e bares subsidiários, de modo que a vista da sala de concertos se mantém dominante em todas as partes da estrutura. As paredes de madeira são decoradas com a representação ampliada da granulação de madeira, em folheado dourado.
Koolhaas admite que sua inspiração para a forma foi uma casa que ele estava criando para uma família disfuncional, onde o pai queria que cada membro pudesse isolar-se dentro da estrutura. Ele também queria um espaço excessivo de closet, e foi esse espaço que, na transição, se tornou a área pública e de transição da Casa.
A Casa de Música é um trabalho de pós-pós-modernismo, o reconhecimento do "junk space" pelo qual Koolhaas tem tanto apreço -as áreas que sobram da vida moderna, desde as áreas desertas e cheias de lixo que cercam os shopping centers até as áreas de expansão suburbana-, a natureza voluntariosa da forma e o entremear do espaço teatral ou até cinematográfico, cuja finalidade é em primeiro lugar emocionar.
Ela depende do ambiente que a cerca e reage a ela. Em se tratando de um arquiteto que certa vez respondeu: "Contexto? Dane-se o contexto!", esta é uma obra que condiz com a sofisticada arquitetura contemporânea de Portugal -e possivelmente do mundo-, que reconhece o uso belo do concreto feito por seus melhores arquitetos, que responde à grandiosa escala cívica do circo sobre o qual se ergue e que permite vistas propositais sobre os prédios belos, mas mundanos que o cercam, com isso iluminando a origem de seus terraços e azulejos, sua ampla ausência de cor e as manchas decorativas que o adornam.
A nova sala de música do Porto é avassaladora, mas nem sempre é convincente. Havia um fluxo constante de visitantes percorrendo o prédio para admirá-lo -trata-se de um edifício público, um misto do aberto e do inacessível, do generoso e do labiríntico.
O arquiteto mais moderno do mundo acaba de construir mais uma obra estarrecedora: um monstro feio, inteligente, espirituoso e brilhante, mas que não possui alma nem contexto.


Tradução Clara Allain


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