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FERREIRA GULLAR
O feitiço do Bruxo
Uma rápida escaramuça encrespou o meio literário
quando alguém afirmou que o romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis, não era lá essa
obra-prima que se diz que é. Ao
ler alguma coisa a respeito, perguntei-me se não poderia essa crítica ter algum fundamento -e
fui conferir.
Fazia quase 20 anos que não relia o romance e, muito embora
minha opinião sobre ele fosse a
consagrada, alimentava, machadianamente, a hipótese de vê-la
desmentida. Não é que eu tenha
restrições ao Bruxo do Cosme Velho, mas é que, a exemplo dele,
não gosto de mistificações, a verdade deve ser dita, ainda que doa
um pouco. Assim, investido de total isenção, iniciei a minha releitura e, logo no primeiro parágrafo, já estava de novo enfeitiçado
por sua irreverência bem-humorada. Depois de contar como ganhara o apelido de dom Casmurro, que decidira usar como título
do livro, alude à hipótese de que o
autor do apelido venha a julgar-se também autor do livro, e arremata: "Há livros que apenas terão isso de seus autores; alguns,
nem tanto".
Como não pretendo meter-me
em polêmicas alheias nem fazer
uma reavaliação crítica do famoso romance, vou tentar dividir
com você, leitor, as alegrias que a
dita releitura me proporcionou.
Mesmo que já tenha lido o romance -o que é bem provável-,
não deixará de reler com prazer
trechos como este:
"Ia entrar na sala de visitas,
quando ouvi proferir o meu nome
e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos,
o mês novembro, o ano é que é
um tanto remoto, mas não hei de
trocar as datas à minha vida só
para agradar às pessoas que não
amam histórias velhas; o ano era
de 1857".
Como o leitor bem sabe, Bentinho, já então velho e casmurro,
imaginou preencher sua solidão
escrevendo talvez sobre jurisprudência, filosofia e política, mas logo desistiu e pensou em escrever
uma "História dos Subúrbios", de
que abriu mão por lhe faltarem
documentos e datas. Restou-lhe,
então, escrever sobre sua própria
vida, o que implicaria contar a
história de um amor nascido na
adolescência, quando conheceu a
menina Capitu e os dois se apaixonaram; um puro amor de
crianças, que começou no quintal
da casa e se alimentou dos sorrisos e olhares da menina que, segundo o agregado da família, José
Dias, tinha "uns olhos de cigana,
oblíqua e dissimulada".
Mas a Bentinho era difícil encontrar a definição para aqueles
olhos: "Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que me dá a idéia daquela feição nova. Traziam um
não sei que fluido misterioso e
enérgico, uma força que arrastava para dentro como a vaga que
se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado,
agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros;
mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me,
tragar-me".
E, de fato, tragou-o. Tanto que
tudo fez para se livrar do seminário e se entregar definitivamente
à paixão de sua vida. Os ciúmes
que ela lhe despertava desvaneceram-se quando os dois juraram
que haveriam de se casar e viver
juntos o resto de sua vida. Casaram-se e lhes nasceu um filho a
que deram o nome de Ezequiel,
em homenagem a Ezequiel Escobar, o melhor amigo do casal. Só
que, à medida que o menino crescia, mais se parecia com o amigo e
não com o pai. Bem, todo mundo
já conhece essa história e, se a relembro aqui, é por ser ela a matéria amarga com que Machado
inocula seu pessimismo.
"Dom Casmurro" é um livro
triste que nos faz rir de nossa própria fragilidade e nos encanta por
sua qualidade literária. Se é verdade que toda a obra de Machado está marcada pelo ceticismo e
pela ironia, neste romance, o desencanto parece atingir seu ápice.
A traição de Capitu não é uma
traição qualquer: ela trai o puro
amor de sua vida, a que jurara fidelidade. Aqui, o ceticismo de
Machado revela-se implacável e
irremissível. Que Marcela traia
Brás Cubas, é compreensível; que
Virgília traia Lobo Neves, é corriqueiro, mas, ao levar Capitu a
trair Bentinho, Machado nos deixa em total desamparo. Não obstante, depois de tudo, nenhuma
mulher levou Bentinho a esquecer
Capitu, segundo ele, "a primeira
amada" de seu coração. E por
que? "Talvez porque nenhuma tinha olhos de ressaca e de cigana
oblíqua e dissimulada." À pergunta de se a Capitu que o traiu
já estava na menina da rua de
Mata-cavalos, responde que sim,
estava, como a fruta na casca. E
conclui o livro com estas palavras
ressentidas, mas desabusadas: "A
minha primeira amiga e o meu
maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o
destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes
seja leve. Vamos à "História dos
Subúrbios".
A releitura de "Dom Casmurro"
levou-me a reler "Memórias Póstumas de Brás Cubas", não menos amargas, mas das quais tiro
para o leitor uma frase que o faça
rir: "E eu, atraído pelo chocalho
de lata que minha mãe agitava
diante de mim, lá ia para a frente,
cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente andava mal, mas andava, e fiquei andando".
Pessimismos à parte, poucos escritores alcançaram, como Machado, tanta graça e mestria na
arte de escrever.
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