São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2000


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Gershon Knispel, artista germano-israelense radicado em SP, retrata bombardeios recentes
Guernica, 60 anos depois


Exposição acontece simultaneamente no Rio e em Israel, acompanhada de poemas feitos por Haroldo de Campos


MARCELO NETTO RODRIGUES E
RONALDO ABREU VAIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Guernica, 1937. Beirute, 1996. Bagdá, 1998. Belgrado, 1999. Cerca de 60 anos após o bombardeio da aldeia basca, retratado em mural por Pablo Picasso, o quadro se repete -talvez pela última vez tendo o Líbano como tema.
Judeu nascido na Alemanha e radicado em São Paulo, o artista Gershon Knispel, 68, retrata, em murais, bombardeios contra civis ocorridos na história recente. A exposição "Quando os Canhões Trovejam, as Musas Não Se Calam" está em cartaz de forma reduzida em Israel e fica até sexta-feira aberta ao público no Rio (leia texto abaixo).
A convite de Assis Chateaubriand, Knispel veio ao Brasil pela primeira vez em 1959, encarregado de realizar os motivos indígenas presentes na fachada do prédio da extinta TV Tupi (atualmente ocupado pela MTV). Permaneceu no país até 1964, período em que se relacionou com Oscar Niemeyer, Gianfrancesco Guarnieri, Haroldo de Campos, Mário Schenberg. Voltou em definitivo em 1995.
Como artista e militante comunista entrou em contato com personalidades do século 20, como Brecht, Fidel Castro, Prestes, Neruda, David Siqueiros e Picasso. Além disso, ilustrou livros de poetas como Vinicius de Moraes, Walt Whitman e Maiakóvski.
"Só falta a foice", sorri Knispel, empunhando um martelo em seu ateliê, esperando que a reclusão do artista semeie a prática revolucionária. Leia trechos de sua entrevista à Folha, na qual Knispel conta "causos" sobre Picasso e Niemeyer, e entenda por que, para ele, "não é por acaso que Frida Kahlo é mais importante hoje em dia do que Rivera".

Folha - Que impressão tinha do Brasil antes de conhecê-lo?
Gershon Knispel -
Era um sonho. Existia com Portinari e, em 1953, com Jorge Amado, que era traduzido em hebraico pela editora dos operários. Logo depois, em Israel, assisti ao filme "Cangaceiros".

Folha - O que o sr. leu de Jorge Amado nessa época?
Knispel -
"O Cavaleiro da Esperança", sobre Prestes.

Folha - Qual sua visão da América Latina no cenário mundial das artes? E quem o domina?
Knispel -
A região não tem a posição que merece. Pouco se fala de Portinari e dos muralistas mexicanos. Não é possível que se ignore uma força tão grande, um grito enorme de protesto. Os EUA não tinham quase nada de arte antes da Segunda Guerra. Não é por acaso que Frida Kahlo é mais importante hoje em dia do que Rivera, Orozco e Siqueiros, por oferecer uma arte que não contesta.
Nos anos 50 e 60, quando os EUA não tinham artistas, chamavam os três de americanos. Depois, começam a aparecer com o movimento abstrato e, ao mesmo tempo, a depreciar os latino-americanos, que eram reconhecidamente superiores. Eles precisam enaltecer os americanos. Então, o que se faz? Pega-se um brasileiro menos capaz e enche-se a bola dele, com uma certa vantagem, só para que eles próprios se agigantem.

Folha - Para o sr. a arte na segunda metade do século se resumiria a um jogo?
Knispel -
Um jogo de investimentos. Nunca antes uma obra havia sido vendida por US$ 86 milhões, como aconteceu com "Os Girassóis", de Van Gogh. Por ocasião desse leilão, estava acontecendo nos EUA uma exposição dele e o ingresso custava US$ 35. Ora, se Van Gogh passasse lá naquela hora não teria dinheiro para entrar na própria exposição. É um jogo, sim.

Folha - Como é sua criação?
Knispel -
É quase o trabalho de um cineasta. Eisenstein me impressionou bastante. A televisão e as fotos de jornais transmitem estímulos válidos.

Folha - O sr. espera que daqui a cem anos olhem os seus painéis e façam associações, por exemplo, com "Guernica"?
Knispel -
Nunca vou valorizar minha própria arte, mas você citou "Guernica". Na minha opinião, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi um momento enorme, quando todos se juntaram para salvar alguma coisa, sem sucesso; navios saíam da Palestina levando árabes e judeus juntos e, se não fosse Picasso...

Folha - O artista pode mudar algo, efetivamente, com sua arte?
Knispel -
Não acredito. Ele é capaz de manter certos vestígios. Não sei se minha obra terá valor daqui a 50 anos. Mas eu pego toda a minha honestidade para tentar reagir, por meio da arte, a coisas que penso ser inaceitáveis.

Folha - O sr. se define como alemão, israelense ou brasileiro?
Knispel -
Sou israelense, pois tenho cidadania israelense, nascido na Alemanha. Já sofri em Israel, visto como alemão, e na Alemanha, visto como judeu. Agora, quanto a minha arte, é alemã; tenho amigos pintores que dizem: "Tá na cara que você é um artista alemão". Tem um espírito de Oriente Médio nas cores, mas meu expressionismo é alemão.

Folha - O sr. se considera um herdeiro do muralismo mexicano, embora de expressão alemã?
Knispel -
Fiz parte de um movimento nos anos 50 que envolvia não só israelenses, mas italianos e egípcios que admiravam a arte mexicana. Do que se trata essa arte? Das raízes indígenas, quase destruídas pelos espanhóis, que não enxergavam a cultura maia, sedentos de se aproveitar de tudo imediatamente.
Em certo sentido, nós passamos a mesma coisa. Foram 2.000 anos de diáspora. Retornamos procurando o antigo, a tradição do pensamento elevado, as raízes. Então, vejo com orgulho Rivera tentando resgatar toda a cultura do verdadeiro povo mexicano, Orozco pintando a luta dos índios contra os conquistadores e Portinari retratando uma realidade cruel em "Os Retirantes".

Folha - Quem mais o influenciou?
Knispel -
O que me orienta é o ser humano. Picasso me influenciou muito, porque soube tomar certas liberdades. Existe uma história interessante. Em 1953, o comitê do Partido Comunista em Paris quis homenagear Stálin, por ocasião de sua morte. Então o convidaram para fazer um retrato dele. E imaginavam que viria um jovem, forte, de bigode; no entanto não foi isso que se viu. Nada de Stálin, mas uma expressão cubista pura. O comitê esperneou: "É sabotagem!". Perguntaram para ele: "O que você fez? Você sabe pintar, você fez Stravinski...". Ele devolveu: "Olha, eu o pintei da maneira que eu queria que ele fosse". É como da Vinci, só existe um a cada 500 anos. Também Portinari. Lembro-me de uma ocasião em que ele estava em Montreaux expondo e o príncipe Philip, da Inglaterra, compareceu, olhou os quadros e perguntou: "Onde estão as suas flores?". Portinari gentilmente retrucou: "Eu não tenho flores, só miséria".

Folha - E sua relação com Oscar Niemeyer à época do golpe militar?
Knispel -
Em Israel, Oscar me disse: "Se me perguntarem lá se sou comunista, vou dizer: "Olha, eu já estou velho, não vou mudar meu jeito de pensar'". O mesmo aconteceu quando, há três anos, no escritório dele, Fidel Castro chegou, abraçou-nos e disse: "Acho que nós três somos os últimos comunistas do mundo". E o Oscar repetiu: "Eu estou velho, não mudo mais". E eu disse a ele: "Ô Oscar, isso você já disse há 35 anos". Ele não fica velho nunca, o Oscar não envelhece.


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