|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Gershon Knispel, artista germano-israelense radicado em SP, retrata bombardeios recentes
Guernica, 60 anos depois
Exposição acontece simultaneamente no Rio e em Israel, acompanhada de poemas feitos por Haroldo de Campos
|
MARCELO NETTO RODRIGUES E
RONALDO ABREU VAIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Guernica, 1937. Beirute, 1996.
Bagdá, 1998. Belgrado, 1999. Cerca de 60 anos após o bombardeio
da aldeia basca, retratado em mural por Pablo Picasso, o quadro se
repete -talvez pela última vez
tendo o Líbano como tema.
Judeu nascido na Alemanha e
radicado em São Paulo, o artista
Gershon Knispel, 68, retrata, em
murais, bombardeios contra civis
ocorridos na história recente. A
exposição "Quando os Canhões
Trovejam, as Musas Não Se Calam" está em cartaz de forma reduzida em Israel e fica até sexta-feira aberta ao público no Rio (leia
texto abaixo).
A convite de Assis Chateaubriand, Knispel veio ao Brasil pela
primeira vez em 1959, encarregado de realizar os motivos indígenas presentes na fachada do prédio da extinta TV Tupi (atualmente ocupado pela MTV). Permaneceu no país até 1964, período em que se relacionou com Oscar Niemeyer, Gianfrancesco
Guarnieri, Haroldo de Campos,
Mário Schenberg. Voltou em definitivo em 1995.
Como artista e militante comunista entrou em contato com personalidades do século 20, como
Brecht, Fidel Castro, Prestes, Neruda, David Siqueiros e Picasso.
Além disso, ilustrou livros de poetas como Vinicius de Moraes,
Walt Whitman e Maiakóvski.
"Só falta a foice", sorri Knispel,
empunhando um martelo em seu
ateliê, esperando que a reclusão
do artista semeie a prática revolucionária. Leia trechos de sua entrevista à Folha, na qual Knispel
conta "causos" sobre Picasso e
Niemeyer, e entenda por que, para ele, "não é por acaso que Frida
Kahlo é mais importante hoje em
dia do que Rivera".
Folha - Que impressão tinha do
Brasil antes de conhecê-lo?
Gershon Knispel - Era um sonho.
Existia com Portinari e, em 1953,
com Jorge Amado, que era traduzido em hebraico pela editora dos
operários. Logo depois, em Israel,
assisti ao filme "Cangaceiros".
Folha - O que o sr. leu de Jorge
Amado nessa época?
Knispel - "O Cavaleiro da Esperança", sobre Prestes.
Folha - Qual sua visão da América
Latina no cenário mundial das artes? E quem o domina?
Knispel - A região não tem a posição que merece. Pouco se fala de
Portinari e dos muralistas mexicanos. Não é possível que se ignore uma força tão grande, um grito
enorme de protesto. Os EUA não
tinham quase nada de arte antes
da Segunda Guerra. Não é por
acaso que Frida Kahlo é mais importante hoje em dia do que Rivera, Orozco e Siqueiros, por oferecer uma arte que não contesta.
Nos anos 50 e 60, quando os
EUA não tinham artistas, chamavam os três de americanos. Depois, começam a aparecer com o
movimento abstrato e, ao mesmo
tempo, a depreciar os latino-americanos, que eram reconhecidamente superiores. Eles precisam
enaltecer os americanos. Então, o
que se faz? Pega-se um brasileiro
menos capaz e enche-se a bola dele, com uma certa vantagem, só
para que eles próprios se agigantem.
Folha - Para o sr. a arte na segunda metade do século se resumiria a
um jogo?
Knispel - Um jogo de investimentos. Nunca antes uma obra
havia sido vendida por US$ 86
milhões, como aconteceu com
"Os Girassóis", de Van Gogh. Por
ocasião desse leilão, estava acontecendo nos EUA uma exposição
dele e o ingresso custava US$ 35.
Ora, se Van Gogh passasse lá naquela hora não teria dinheiro para
entrar na própria exposição. É um
jogo, sim.
Folha - Como é sua criação?
Knispel - É quase o trabalho de
um cineasta. Eisenstein me impressionou bastante. A televisão e
as fotos de jornais transmitem estímulos válidos.
Folha - O sr. espera que daqui a
cem anos olhem os seus painéis e
façam associações, por exemplo,
com "Guernica"?
Knispel - Nunca vou valorizar
minha própria arte, mas você citou "Guernica". Na minha opinião, a Guerra Civil Espanhola
(1936-1939) foi um momento
enorme, quando todos se juntaram para salvar alguma coisa,
sem sucesso; navios saíam da Palestina levando árabes e judeus
juntos e, se não fosse Picasso...
Folha - O artista pode mudar algo, efetivamente, com sua arte?
Knispel - Não acredito. Ele é capaz de manter certos vestígios.
Não sei se minha obra terá valor
daqui a 50 anos. Mas eu pego toda
a minha honestidade para tentar
reagir, por meio da arte, a coisas
que penso ser inaceitáveis.
Folha - O sr. se define como alemão, israelense ou brasileiro?
Knispel - Sou israelense, pois tenho cidadania israelense, nascido
na Alemanha. Já sofri em Israel,
visto como alemão, e na Alemanha, visto como judeu. Agora,
quanto a minha arte, é alemã; tenho amigos pintores que dizem:
"Tá na cara que você é um artista
alemão". Tem um espírito de
Oriente Médio nas cores, mas
meu expressionismo é alemão.
Folha - O sr. se considera um herdeiro do muralismo mexicano, embora de expressão alemã?
Knispel - Fiz parte de um movimento nos anos 50 que envolvia
não só israelenses, mas italianos e
egípcios que admiravam a arte
mexicana. Do que se trata essa arte? Das raízes indígenas, quase
destruídas pelos espanhóis, que
não enxergavam a cultura maia,
sedentos de se aproveitar de tudo
imediatamente.
Em certo sentido, nós passamos
a mesma coisa. Foram 2.000 anos
de diáspora. Retornamos procurando o antigo, a tradição do pensamento elevado, as raízes. Então,
vejo com orgulho Rivera tentando resgatar toda a cultura do verdadeiro povo mexicano, Orozco
pintando a luta dos índios contra
os conquistadores e Portinari retratando uma realidade cruel em
"Os Retirantes".
Folha - Quem mais o influenciou?
Knispel - O que me orienta é o
ser humano. Picasso me influenciou muito, porque soube tomar
certas liberdades. Existe uma história interessante. Em 1953, o comitê do Partido Comunista em
Paris quis homenagear Stálin, por
ocasião de sua morte. Então o
convidaram para fazer um retrato
dele. E imaginavam que viria um
jovem, forte, de bigode; no entanto não foi isso que se viu. Nada de
Stálin, mas uma expressão cubista
pura. O comitê esperneou: "É sabotagem!". Perguntaram para ele:
"O que você fez? Você sabe pintar,
você fez Stravinski...". Ele devolveu: "Olha, eu o pintei da maneira
que eu queria que ele fosse". É como da Vinci, só existe um a cada
500 anos. Também Portinari.
Lembro-me de uma ocasião em
que ele estava em Montreaux expondo e o príncipe Philip, da Inglaterra, compareceu, olhou os
quadros e perguntou: "Onde estão as suas flores?". Portinari gentilmente retrucou: "Eu não tenho
flores, só miséria".
Folha - E sua relação com Oscar
Niemeyer à época do golpe militar?
Knispel - Em Israel, Oscar me
disse: "Se me perguntarem lá se
sou comunista, vou dizer: "Olha,
eu já estou velho, não vou mudar
meu jeito de pensar'". O mesmo
aconteceu quando, há três anos,
no escritório dele, Fidel Castro
chegou, abraçou-nos e disse:
"Acho que nós três somos os últimos comunistas do mundo". E o
Oscar repetiu: "Eu estou velho,
não mudo mais". E eu disse a ele:
"Ô Oscar, isso você já disse há 35
anos". Ele não fica velho nunca, o
Oscar não envelhece.
Texto Anterior: Download: MP3 chega ao Congresso dos Estados Unidos Próximo Texto: Trecho Índice
|