São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2000


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ARNALDO JABOR

O Favela Bairro é uma revolução democrática

"Eu não sabia, eu não sabia..." -repito para Manoel Ribeiro, arquiteto e urbanista que me mostrava os resultados do programa Favela Bairro da Prefeitura do Rio.
O Márcio Moreira Alves já tinha escrito sobre isso, e o Zuenir também, mas eu não tinha sido tocado pela revelação do óbvio.
Cacá Diegues mostra-me trechos do documentário que roda sobre as favelas, e Manoel Ribeiro, um dos planejadores do Favela Bairro, me cita a frase luminosa do urbanista inglês John Turner, que esteve aqui nos anos 60 e disse: "A favela me foi mostrada como um problema e, no entanto, é a solução; os planos de erradicação eram citados como solução e são o problema".
Essa frase é o divisor de águas do eterno desafio da miséria dos morros. Sempre se pensou: "Por que não raspam, por que não despejam, por que não erradicam?". A idéia de arrancar o "mal pela raiz" é antiga, burra e traz embutida um totalitarismo difuso, um higienismo excludente, um preconceito de classe e até racismo.
Sempre achamos que a favela fosse uma invasão, uma apropriação indébita da paisagem, mas ela faz parte da cidade como os condomínios emergentes da Barra ou os palacetes da burguesia de Ipanema. Por isso, fico envergonhado diante do que Manoel me explica, pois eu não sabia do sucesso da extraordinária "missão" que entusiasma vários urbanistas do Rio, no maravilhoso plano de sanear, de reformar e de incluir na cidadania essa tragédia secular.
O Favela Bairro teve uma semente nos anos 60 com a Codesco, dirigida por Marcílio Marques Moreira e pelo jornalista Silvio Henrique Ferraz, que, na época, me impressionou muito com o óbvio da solução em Brás de Pina: "A favela tem de ser salva segundo o desejo e a orientação dos moradores".
E hoje, 35 anos depois, Manoel me explica, com a sóbria sabedoria dos que respeitam a complexidade das coisas: "Há uma ordem oculta na aparente confusão da favela. Essa ordem foi construída pelas necessidades reais do cotidiano dos pobres. A precariedade é um instrumento para os favelados, e a transgressão também é inevitável para uma estratégia de sobrevivência. Você não saberia morar numa favela, você não saberia fazer um "gato" elétrico ou de água, como se relacionar com o tráfico, com a violência".
Continua: "O favelado vive sob duas leis: uma durante a semana, a lei de baixo, dos brancos, da polícia, quando vai trabalhar na cidade. No fim-de-semana e nas noites, está sob a lei dos traficantes. Há uma linguagem escrita pelos barracos, pelos becos, que ensina como eles vivem, como as famílias se reúnem de maneira a se ajudar e proteger mutuamente".
"O urbanismo tradicional tende para a imposição de soluções. Essa experiência está criando um urbanismo inédito, com respeito pela vida das pessoas, pelas soluções possíveis, o que não houve em Brasília, na Barra etc... Só uma grande humildade permite esse conceito de urbanização."
"O principal resultado do Favela Bairro é o aumento da auto-estima da população. As pessoas passam a ter endereço, a trabalhar em mutirões, reconstroem suas casas, pois passam a ter títulos de propriedade, perdem a angustiante sensação de fragilidade, de serem marginais, excluídos, e passam a se sentir cidadãos."
"O projeto é multidisciplinar e, além do saneamento básico com arruamentos, esgotos, centros esportivos, dinheiro para reforma, creches, há o estímulo à produção da cultura natural do lugar, às atividades artesanais de fundo de quintal com um sucesso espantoso, criando empregos, reutilizando estruturas, como barracões de escolas de samba, que empregam gente por três meses e passaram a ser fábricas o ano todo, ou manufaturas de quebra-galho, que viraram microempresas, ou movimentos "funk" que viraram bandas lucrativas, tocando até no exterior."
Manoel ressalta: "Nós não estimulamos o "pouquinho" ou o "pobrinho" não... Quem diz o que deve ser produzido na favela são seus moradores: eles dirigem seu destino; nós só ajudamos com financiamento ou logística. Nesta época de globalização, quando a uniformidade tende a se instalar no mundo, a busca da especificidade é uma grande fonte geradora de riquezas. O que é "parcial", "local", isso pode vir a ser um diamante maravilhoso e lucrativo".
E conclui: "O programa não tem nada de caridade nem de bondade; trata-se de inserir gente na produção, de modo a provocar uma reação em cadeia que enriquece as relações sociais internas do morro e o põe em contato com o mundo "branco" de baixo. O Favela Bairro é bom para o mundo "de baixo" também. Não é assistencialista, não é cosmético, não é de fachada; o Favela Bairro é a potencialização de áreas carentes, e os resultados são espantosos".
Eu fico olhando emocionado as imagens das 110 favelas que já foram reformadas, vejo a lama virada em asfalto, a vala negra mudada em rio, árvores e jardins onde havia lixo, o barraco encantado em casa colorida, vejo os rostos orgulhosos da auto-estima, vejo as lágrimas de alegria onde havia vergonha. Vergonha tenho eu, Manoel, pois há meses escrevi que não havia projetos decentes para as favelas do Rio, por arrogância e ignorância.
E o preço? Pergunto a Manoel. "Olha, Serrinha, o berço do samba, foi reformada por US$ 3 milhões. É baratíssimo; basta haver imaginação e desejo." E fico pensando que, com dois TRTs superfaturados, com o roubo nos túneis de São Paulo, com o rombo de bancos perdoados, dava para sanear o Brasil inteiro. No Rio, está sendo feita uma revolução com pouco dinheiro.
E no resto do país? Há pouca coisa. Mas mirem-se nesse espelho: o Favela Bairro é a imaginação democrática a serviço da cidadania. Tinha de estar no programa federal, de cada Estado e de cada prefeitura. Mas infelizmente...


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