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ARNALDO JABOR
O Favela Bairro é uma revolução democrática
"Eu não sabia, eu não sabia..." -repito para Manoel Ribeiro, arquiteto e urbanista que me mostrava os resultados
do programa Favela Bairro da
Prefeitura do Rio.
O Márcio Moreira Alves já tinha escrito sobre isso, e o Zuenir
também, mas eu não tinha sido
tocado pela revelação do óbvio.
Cacá Diegues mostra-me trechos do documentário que roda
sobre as favelas, e Manoel Ribeiro, um dos planejadores do Favela Bairro, me cita a frase luminosa do urbanista inglês John Turner, que esteve aqui nos anos 60 e
disse: "A favela me foi mostrada
como um problema e, no entanto,
é a solução; os planos de erradicação eram citados como solução e
são o problema".
Essa frase é o divisor de águas
do eterno desafio da miséria dos
morros. Sempre se pensou: "Por
que não raspam, por que não despejam, por que não erradicam?".
A idéia de arrancar o "mal pela
raiz" é antiga, burra e traz embutida um totalitarismo difuso, um
higienismo excludente, um preconceito de classe e até racismo.
Sempre achamos que a favela
fosse uma invasão, uma apropriação indébita da paisagem,
mas ela faz parte da cidade como
os condomínios emergentes da
Barra ou os palacetes da burguesia de Ipanema. Por isso, fico envergonhado diante do que Manoel me explica, pois eu não sabia
do sucesso da extraordinária
"missão" que entusiasma vários
urbanistas do Rio, no maravilhoso plano de sanear, de reformar e
de incluir na cidadania essa tragédia secular.
O Favela Bairro teve uma semente nos anos 60 com a Codesco, dirigida por Marcílio Marques
Moreira e pelo jornalista Silvio
Henrique Ferraz, que, na época,
me impressionou muito com o
óbvio da solução em Brás de Pina:
"A favela tem de ser salva segundo o desejo e a orientação dos moradores".
E hoje, 35 anos depois, Manoel
me explica, com a sóbria sabedoria dos que respeitam a complexidade das coisas: "Há uma ordem
oculta na aparente confusão da
favela. Essa ordem foi construída
pelas necessidades reais do cotidiano dos pobres. A precariedade
é um instrumento para os favelados, e a transgressão também é
inevitável para uma estratégia de
sobrevivência. Você não saberia
morar numa favela, você não saberia fazer um "gato" elétrico ou
de água, como se relacionar com
o tráfico, com a violência".
Continua: "O favelado vive sob
duas leis: uma durante a semana,
a lei de baixo, dos brancos, da polícia, quando vai trabalhar na cidade. No fim-de-semana e nas
noites, está sob a lei dos traficantes. Há uma linguagem escrita pelos barracos, pelos becos, que ensina como eles vivem, como as famílias se reúnem de maneira a se
ajudar e proteger mutuamente".
"O urbanismo tradicional tende
para a imposição de soluções. Essa experiência está criando um
urbanismo inédito, com respeito
pela vida das pessoas, pelas soluções possíveis, o que não houve
em Brasília, na Barra etc... Só
uma grande humildade permite
esse conceito de urbanização."
"O principal resultado do Favela Bairro é o aumento da auto-estima da população. As pessoas
passam a ter endereço, a trabalhar em mutirões, reconstroem
suas casas, pois passam a ter títulos de propriedade, perdem a angustiante sensação de fragilidade,
de serem marginais, excluídos, e
passam a se sentir cidadãos."
"O projeto é multidisciplinar e,
além do saneamento básico com
arruamentos, esgotos, centros esportivos, dinheiro para reforma,
creches, há o estímulo à produção
da cultura natural do lugar, às
atividades artesanais de fundo de
quintal com um sucesso espantoso, criando empregos, reutilizando estruturas, como barracões de
escolas de samba, que empregam
gente por três meses e passaram a
ser fábricas o ano todo, ou manufaturas de quebra-galho, que viraram microempresas, ou movimentos "funk" que viraram bandas lucrativas, tocando até no exterior."
Manoel ressalta: "Nós não estimulamos o "pouquinho" ou o "pobrinho" não... Quem diz o que deve ser produzido na favela são
seus moradores: eles dirigem seu
destino; nós só ajudamos com financiamento ou logística. Nesta
época de globalização, quando a
uniformidade tende a se instalar
no mundo, a busca da especificidade é uma grande fonte geradora de riquezas. O que é "parcial",
"local", isso pode vir a ser um diamante maravilhoso e lucrativo".
E conclui: "O programa não
tem nada de caridade nem de
bondade; trata-se de inserir gente
na produção, de modo a provocar
uma reação em cadeia que enriquece as relações sociais internas
do morro e o põe em contato com
o mundo "branco" de baixo. O Favela Bairro é bom para o mundo
"de baixo" também. Não é assistencialista, não é cosmético, não é
de fachada; o Favela Bairro é a
potencialização de áreas carentes, e os resultados são espantosos".
Eu fico olhando emocionado as
imagens das 110 favelas que já foram reformadas, vejo a lama virada em asfalto, a vala negra mudada em rio, árvores e jardins onde havia lixo, o barraco encantado em casa colorida, vejo os rostos
orgulhosos da auto-estima, vejo
as lágrimas de alegria onde havia
vergonha. Vergonha tenho eu,
Manoel, pois há meses escrevi que
não havia projetos decentes para
as favelas do Rio, por arrogância
e ignorância.
E o preço? Pergunto a Manoel.
"Olha, Serrinha, o berço do samba, foi reformada por US$ 3 milhões. É baratíssimo; basta haver
imaginação e desejo." E fico pensando que, com dois TRTs superfaturados, com o roubo nos túneis
de São Paulo, com o rombo de
bancos perdoados, dava para sanear o Brasil inteiro. No Rio, está
sendo feita uma revolução com
pouco dinheiro.
E no resto do país? Há pouca
coisa. Mas mirem-se nesse espelho: o Favela Bairro é a imaginação democrática a serviço da cidadania. Tinha de estar no programa federal, de cada Estado e
de cada prefeitura. Mas infelizmente...
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