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CARLOS HEITOR CONY
Frases, gestos e flechas
A frase de efeito é um gesto pomposo, cheio de som e fúria, que pouco ou nada significa
FAZER FRASES é uma necessidade da vida em comum do cidadão comum, e, em alguns casos, uma arte, aliás, muito apreciada.
Nada tenho contra os que cultuam
a frase pela frase. Vez por outra,
quando estou sem assunto ou sem
inspiração -o que é freqüente-,
apelo para a frase de efeito como
o amador que, de dois em dois meses, tenta jogar uma pelada no campo do clube do qual é sócio. Ou o
aposentado coberto de tédio que pega no pincel e pinta uns quadros abstratos e dominicais -estou neste último caso.
Ao longo dos séculos foram ditas,
feitas e proclamadas frases notáveis
que não resolveram problema algum, mas deram garantida posteridade a seus autores.
Vamos lá: Melhor, combateremos
à sombra! Do alto destas pirâmides,
4.000 anos vos contemplam! Vim, vi
e venci! Nem só de pão vive o homem! Meu reino por um cavalo! Sigam-me os que forem brasileiros!
Diga ao povo que fico! E poderia encher páginas e páginas com frases
equivalentes, que ficam reboando
no ar e nas páginas da história.
Nenhuma delas, na realidade, representa ou representou uma verdade absoluta, indestrutível. Combater à sombra das flechas adversárias nunca será cômodo. Não tem
ninguém e nada em cima das pirâmides (eu já estive em cima de uma
delas e não vi nada, mas nada mesmo, só o deserto). Na hora da luta, os
soldados de Napoleão se viraram como puderam, mataram ou morreram sem pensar na invisível e histórica platéia que o comandante convocara para a batalha.
César não foi, nem viu nem venceu realmente, apenas se deslocou
no espaço como qualquer um, viu o
que podia ser visto e venceu sem
convencer, acabou com um punhal
nas costas. Trocar um reino por um
cavalo é ofender ao mesmo tempo
os cavalos e os reinos, a barganha
não resolve o problema nem do reino, nem do rei nem do cavalo.
Vai daí, concluo que a frase de efeito não é frase nem efeito, é um gesto,
geralmente pomposo, cheio de som
e fúria, que pouco ou nada significa.
Lembro uma formidável tirada de
Cyrano de Bergerac. Com seu nariz
enorme, sua alma valente, entusiasta e nobre, ele se tornara mais ridículo pela maneira com que caminhava pela vida do que pela deformidade de seu rosto.
Outros narigudos existiram antes
e depois dele, deram a volta por cima, continuaram narigudos sem se
sentirem ridículos. Mas Cyrano de
Bergerac assumia o seu ridículo, não
o do nariz propriamente dito, mas o
da sua altivez, seus grandes propósitos, sua lealdade ao amor, à luta, aos
ideais que considerava nobres.
Numa dessas encalacradas, ele resolve tomar uma atitude tresloucada, quase suicida, virando a mesa da
sua própria vida, de seus interesses,
de seu amor pela bela Roxane. Um
amigo, aterrado, reclama com veemência:
- Mas isso é uma loucura!
Empinando o quilométrico nariz,
abrindo os braços para enfrentar
imaginariamente o universo, Cyrano responde com solenidade:
- Sim, é uma loucura! Mas que gesto!
Taí. A frase de efeito, que costumamos pinçar da História, da lenda,
da literatura, de nossas próprias vidas, é sempre uma loucura ou uma
idiotice consumada. Mas que gesto!
Isso tudo vem a propósito de um
crime que perpetrei não faz muito
tempo, num texto que andou por aí.
Eu precisava terminar um parágrafo
e não tinha a frase exata que fizesse
sentido e, ao mesmo tempo, arrematasse o que pretendia dizer. E me saí
com essa estupidez: "Ficar em silêncio é, às vezes, a pior forma de fazer
barulho".
O diabo é que a frase (ou o gesto)
apareceu num jornal do interior de
Santa Catarina. Semana passada, recebi o recorte com um poema complicadíssimo, puxado a Fernando
Pessoa, tendo como epígrafe a citada
besteira.
Tive repentina vontade de fazer
outra frase equivalente para arrematar esta crônica. Mas hoje acordei
com o firme propósito de ser honesto, pelo menos até o meio-dia. Depois, será o que Deus e o Diabo quiserem. Não respondo por mim na
parte da tarde.
Não repetirei o finado Chacrinha
Barbosa que costumava dizer em
seu programa: "Você perdeu a oportunidade de ficar calado!".
Sem oportunidade para a frase e o
gesto, chego singelamente ao fim,
combatendo à sombra das flechas
que voam, insensíveis, cobrindo
vencedores e vencidos.
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