São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Frases, gestos e flechas

A frase de efeito é um gesto pomposo, cheio de som e fúria, que pouco ou nada significa

FAZER FRASES é uma necessidade da vida em comum do cidadão comum, e, em alguns casos, uma arte, aliás, muito apreciada.
Nada tenho contra os que cultuam a frase pela frase. Vez por outra, quando estou sem assunto ou sem inspiração -o que é freqüente-, apelo para a frase de efeito como o amador que, de dois em dois meses, tenta jogar uma pelada no campo do clube do qual é sócio. Ou o aposentado coberto de tédio que pega no pincel e pinta uns quadros abstratos e dominicais -estou neste último caso.
Ao longo dos séculos foram ditas, feitas e proclamadas frases notáveis que não resolveram problema algum, mas deram garantida posteridade a seus autores.
Vamos lá: Melhor, combateremos à sombra! Do alto destas pirâmides, 4.000 anos vos contemplam! Vim, vi e venci! Nem só de pão vive o homem! Meu reino por um cavalo! Sigam-me os que forem brasileiros! Diga ao povo que fico! E poderia encher páginas e páginas com frases equivalentes, que ficam reboando no ar e nas páginas da história.
Nenhuma delas, na realidade, representa ou representou uma verdade absoluta, indestrutível. Combater à sombra das flechas adversárias nunca será cômodo. Não tem ninguém e nada em cima das pirâmides (eu já estive em cima de uma delas e não vi nada, mas nada mesmo, só o deserto). Na hora da luta, os soldados de Napoleão se viraram como puderam, mataram ou morreram sem pensar na invisível e histórica platéia que o comandante convocara para a batalha.
César não foi, nem viu nem venceu realmente, apenas se deslocou no espaço como qualquer um, viu o que podia ser visto e venceu sem convencer, acabou com um punhal nas costas. Trocar um reino por um cavalo é ofender ao mesmo tempo os cavalos e os reinos, a barganha não resolve o problema nem do reino, nem do rei nem do cavalo.
Vai daí, concluo que a frase de efeito não é frase nem efeito, é um gesto, geralmente pomposo, cheio de som e fúria, que pouco ou nada significa. Lembro uma formidável tirada de Cyrano de Bergerac. Com seu nariz enorme, sua alma valente, entusiasta e nobre, ele se tornara mais ridículo pela maneira com que caminhava pela vida do que pela deformidade de seu rosto.
Outros narigudos existiram antes e depois dele, deram a volta por cima, continuaram narigudos sem se sentirem ridículos. Mas Cyrano de Bergerac assumia o seu ridículo, não o do nariz propriamente dito, mas o da sua altivez, seus grandes propósitos, sua lealdade ao amor, à luta, aos ideais que considerava nobres.
Numa dessas encalacradas, ele resolve tomar uma atitude tresloucada, quase suicida, virando a mesa da sua própria vida, de seus interesses, de seu amor pela bela Roxane. Um amigo, aterrado, reclama com veemência:
- Mas isso é uma loucura!
Empinando o quilométrico nariz, abrindo os braços para enfrentar imaginariamente o universo, Cyrano responde com solenidade:
- Sim, é uma loucura! Mas que gesto!
Taí. A frase de efeito, que costumamos pinçar da História, da lenda, da literatura, de nossas próprias vidas, é sempre uma loucura ou uma idiotice consumada. Mas que gesto!
Isso tudo vem a propósito de um crime que perpetrei não faz muito tempo, num texto que andou por aí. Eu precisava terminar um parágrafo e não tinha a frase exata que fizesse sentido e, ao mesmo tempo, arrematasse o que pretendia dizer. E me saí com essa estupidez: "Ficar em silêncio é, às vezes, a pior forma de fazer barulho".
O diabo é que a frase (ou o gesto) apareceu num jornal do interior de Santa Catarina. Semana passada, recebi o recorte com um poema complicadíssimo, puxado a Fernando Pessoa, tendo como epígrafe a citada besteira.
Tive repentina vontade de fazer outra frase equivalente para arrematar esta crônica. Mas hoje acordei com o firme propósito de ser honesto, pelo menos até o meio-dia. Depois, será o que Deus e o Diabo quiserem. Não respondo por mim na parte da tarde.
Não repetirei o finado Chacrinha Barbosa que costumava dizer em seu programa: "Você perdeu a oportunidade de ficar calado!".
Sem oportunidade para a frase e o gesto, chego singelamente ao fim, combatendo à sombra das flechas que voam, insensíveis, cobrindo vencedores e vencidos.


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