São Paulo, sábado, 30 de maio de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Admirável mundo novo


Versão poética de Robert Browning para a lenda do flautista de Hamelin ganha uma edição bilíngue


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A LENDA do flautista de Hamelin entrou para o imaginário infanto-juvenil em sua versão mais "soft", como história do saltimbanco que encanta os ratos que assolam uma cidade medieval com o som de seu instrumento, livrando-a dos invasores. A versão poética do escritor inglês Robert Browning (1812-1889), em tradução não menos encantadora de Alípio Correia de Franca Neto, restitui ao enredo seu lado sombrio, fiel às fontes.
Como explica o tradutor, a lenda remonta à Alemanha do século 13, quando um flautista teria raptado as crianças de Hamelin -episódio que acabou se tornando lição de moral nas sucessivas versões populares e eruditas. Em "O Flautista de Manto Malhado em Hamelin", a cidade portuária está às voltas com uma horda de roedores enquanto o prefeito glutão e seus asseclas nada fazem para extirpar a praga.
Surge então um flautista que promete libertar a cidade em troca de mil florins. Diante da oferta, o prefeito e seus edis oferecem logo 50 mil. Quando o músico conduz os ratos para a morte nas águas do rio Weser, porém, "o Alcaide pisca e diz, gaiato:/ -O rio não consta em nosso trato". Ultrajado com o não cumprimento da promessa, o flautista enfeitiça as crianças de Hamelin, conduzindo-as para fora da cidade.
Tal enredo se presta a diversas interpretações: crítica à ganância dos governantes (com menção a São Mateus: "Passa pela agulha um camelo,/ Mas nunca um rico entra no céu!"); voto de fidelidade à palavra empenhada ("Se prometer pagar por essas/ Tarefas, cumpra com as promessas!"); louvor à liberdade do artista em confronto com a mesquinharia e o preconceito (nesse sentido, a fábula guarda curiosa semelhança com a canção "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque) etc.
Para leitores contemporâneos, como assinala Viviana Bosi num dos textos de apresentação, o flautista é mais um avatar do anti-herói, daquele que se exclui e é excluído do universo mental "tarefeiro".
Não por acaso, Browning dá voz ao Manco, criança que devido a sua deficiência não pode seguir a trupe infantil e comenta o destino venturoso dos demais:
"Tudo aqui/ ficou sem graça; eu perdi/ A terra linda que eles veem,/ A mim prometida também;/ Terra entrevista num relance,/ Junto à cidade, ao nosso alcance,/ Com suas fontes, frutas, aves/ E flores de matiz mais suave,/ Onde tudo é novo, admirável".
Se o Manco é um duplo do flautista ou do roedor que sobrevive ao afogamento ("Ó ratos! Comemorem!/ O mundo é um enorme armazém!/ Belisquem, encham o bucho, eia!/ Café e almoço e lanche e ceia!"), há sob a divertida severidade moral de Browning a utopia de um Eldorado à margem da sociedade utilitária.


O FLAUTISTA DE MANTO MALHADO EM HAMELIN
Autor: Robert Browning
Tradução: Alípio Correia de Franca Neto
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 29 (80 págs.)
Avaliação: ótimo




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