São Paulo, Quarta-feira, 30 de Junho de 1999
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LIVRO LANÇAMENTOS
Quando o bombom se transforma em pecado

NINA HORTA
Colunista da Folha

São 39 capítulos que têm como títulos os dias da Quaresma. O livro começa numa terça-feira gorda e acaba um dia depois da Páscoa.
Vianne Rochet e Anouk, a filha de 6 anos, chegam a Lansquenet sous Tannes, cidadezinha de 200 habitantes entre Toulouse e Bordeaux no dia de Carnaval. Assistem ao final da passagem de um carro alegórico, a pequena Anouk, embevecida. A cidade, que mais tarde vai se render a elas, naquele momento é toda olhares desconfiados e frios.
Uma figura de preto encerra o desfile. É o pároco da aldeia com sua sotaina fora de moda, jeito felino e ameaçador. Mau, muito mau.
As duas forasteiras vão para casa, uma antiga padaria em mau estado de conservação, e antes de dormir exorcizam os fantasmas do lugar com sal grosso e pão no batente da porta, cantorias mágicas, nada muito católico.
A história é contada a duas vozes, ora por Vianne Rochet, a nova moradora, que reflete sobre sua vida e a dos habitantes do lugar, ora pelo cura de aldeia, o padre Reynaud. É a realidade com duas perspectivas.
Pelas conversas do padre aprendemos que a mulher que chegou, sem aviso, de repente, reformou, como num passe de mágica, a velha padaria e a transformou numa chocolateria artesanal de grande luxo.
O prédio velho, bem em frente à igreja, virou uma caixa de bombons, um confeito vermelho e dourado sobre fundo branco. Na época da Quaresma... A tradicional época da renúncia.
Prateleiras cheias de caixas, pacotes, cartuchos de papel dourado e prateado, chocolates, pralinas, trufas, frutas cristalizadas, conchas de chocolate, pétalas de rosas confeitadas.
Seria aquilo o mal? Aquela insignificância de tentação seria o pecado moderno?
O diabo já não era o mesmo, não tinha substância, rompera-se em mil estilhaços. No Velho Testamento, Satã tinha cara. Sacrificavam-se filhos em nome do Senhor. Agora era o bombom.
A nova moradora da cidade só quer saber de cativar. É uma alquimista inofensiva e encanta adultos e crianças com biscoitos, pães de mel, bolos de massapão. Quem não teria direito a um momento de luxo, beleza, auto-indulgência?
Ela somente vende sonhos, pequenas tentações, doces alegrias. Gosta de cozinhar pela feitiçaria dos ingredientes que se transmutam, dos utensílios que brilham em cobres e alumínios, dos gratinados, da transitoriedade deliciosa do doce que se faz e que imediatamente se come.
E quem é o mais tentado na cidade cheia de humanos mais que humanos? O padre Reynaud, é claro. Está perturbado e enraivecido. Ao ver a loja lembra-se do quarto da mãe, da intimidade de "boudoir" do quarto da mãe, do abandono lânguido. Deve existir um pecado naquela doçura excessiva...
A cozinheira baixou na cidade como anjo sem asas e liberou desejos reprimidos, promoveu encontros e desencontros, mudou vidas, sem outra arma que a colher de pau, o cheiro suave das trufas e sua presença forte, colorida e sensual.
Tudo piora quando Vianne resolve promover um festival no Domingo de Páscoa, numa tentativa, sempre segundo o padre, de solapar as bases da igreja, seus símbolos, sacramentos...
Maldita mulher que prega uma paródia de tolerância, boa vontade, piedade, quando o que cresce é a corrupção.
Com a volúpia de seus cafés achocolatados, ela pode atacar a autoridade do padre e insinuar que o ovo de Páscoa é a mensagem e não a palavra de Cristo.
Pelos excessos do pároco Reynaud começamos a perceber que ele guarda segredos e que vai querer acabar com a festa prometida. Vai-se construindo a trama, muito leve, o Domingo que se aproxima, a surpresa.
Quem ganhará? O prazer ou a ascese, a alegria ou a severidade? Direito e avesso.
O livro é o primeiro de Joanne Harris, inglesa. Fiquei com certa dificuldade em colocá-lo na apropriada faixa de idade para leitura. Parece um pouco com "A Fábrica de Chocolates", de Roald Dahl, para adultos, ou um Peter Mayle para adolescentes.
Uma história bem contada, bem escrita, para jovens românticos, um pequeno e fácil conto de fadas, uma fábula à antiga.
A única coisa que o retiraria do setor juvenil são duas linhas, nem um parágrafo, onde a heroína chocolateira encomenda um filho, uma produção independente junto com um cigano que não ama.
Ela, que se comportou o tempo todo como um anjo de candura adocicada, mostra um lado dionisíaco mais forte do que se pensava, aparentemente para dar um irmão à filha e acabar de vez com um coelho invisível chamado Pantoufle que acompanha a menina.
Ficaria mais coerente com a história se glaçasse o coelho em chocolate branco e preto. Enfim...
Um livro bem feito, engraçadinho e nada ordinário para adolescentes.


Avaliação:    


Livro: Chocolate Autor: Joanne Harris Lançamento: Record Quanto: R$ 28 (304 págs.)

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