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CARLOS HEITOR CONY
As burrices do pensamento único
Já comentei diversas vezes as
fases da sociedade em que predomina o pensamento único. Não
vem ao caso repetir as distorções
causadas por momentos em que
todos se transformavam em Juquinhas de anedota -aquele guri safado que só pensava em sacanagem. Exemplo: o professor
mostra ao Juquinha uma caixa
de fósforos e pergunta: "Juquinha,
isto é uma caixa de fósforos. No
que você pensa quando vê uma
caixa de fósforos?".
Juquinha lambe os beiços: "Professor, eu penso no seguinte: a caixinha de fósforo está no chão, aí
vai passando uma velha, se abaixa para apanhar a caixinha, aí eu
venho por trás e... pego a velha de
jeito...".
Tenho encontrado centenas de
Juquinhas nos últimos dias. Certa
vez, faz uns dois ou três anos, fui a
Manaus falar a universitários sobre a crise de água doce que
ameaça o mundo. Previsões de
institutos abalizados garantem
que em 2020 não haverá água potável suficiente para matar a sede
da população mundial, que deverá andar por volta dos 15 bilhões
ou 20 bilhões de seres humanos.
Pesquisei Deus e o Diabo para
fazer a palestra, ouvi entendidos,
preparei anotações e falei durante 55 minutos sobre o assunto, citando estatísticas e dados geológicos que fucei por aí -modéstia à
parte, fiquei por dentro do assunto na medida de minhas possibilidades e deficiências.
Terminada a fala, o mediador
abriu a palavra aos estudantes
para que fizessem as perguntas
que julgassem necessárias para
melhor compreensão do tema
abordado. Lá de trás, a mão de
um jovem se levantou. Logo depois, ele inteiro se levantou para
expor a questão que o atormentava e que eu não havia abordado
ou abordara mal.
- Por que Paulo Coelho entrou
na Academia Brasileira de Letras?
Eu havia pintado um quadro
apocalíptico, milhões de seres humanos morrendo de sede, matando-se uns aos outros por uma gota daquilo que os jornais antigamente chamavam de "precioso líquido". Mas o assunto único, naquela ocasião, era a entrada do
Paulo Coelho na ABL.
Por cortesia, declarei que ali estava a convite de uma universidade para falar de outra coisa,
mas, já que havia inquietação sobre Paulo Coelho, não custava
responder e disse o que devia dizer.
Passa o tempo, semana passada, em outra palestra para jovens
vestibulandos, o tema que me deram foram dois livros que estavam inscritos no vestibular marcado para o fim do ano: Manuel
Bandeira (poemas) e Manuel Antônio de Almeida ("Memórias de
um Sargento de Milícias").
Desta vez não foram necessárias pesquisas nem esforço suplementar para falar sobre dois autores que admiro e que tanto me
marcaram. Li dois ou três poemas
de Bandeira, falei bastante sobre
o "Sargento de Milícias", obra
que influenciou Machado de Assis e Mário de Andrade, mostrando inclusive que Macunaíma, em
sua fase urbana, foi literalmente
a continuação do personagem de
Manuel Antônio de Almeida, escrito quase cem anos antes.
Dentro da tradição, o mediador
abriu a palavra aos vestibulandos, uns quatro ou cinco logo se
levantaram e quiseram fazer perguntas. Mal informado, fiquei lisonjeado. Minha palestra havia
despertado interesse sobre a obra
de Bandeira ou de Manuel Antônio de Almeida. Alvíssaras!
Ledo e ivo engano. Falando
quase ao mesmo tempo, os quatro
ou cinco jovens mostraram-se decepcionados e até irritados com a
manhã que julgavam perdida. Ali
estavam esperando que o palestrante falasse da corrupção no governo, da crise no PT, da prisão
do Maluf, da cassação do Roberto
Jefferson. Lamentavam que um
profissional da mídia revelasse
tanto e tamanho desdém pela vida nacional, pela sociedade justamente indignada diante de tantos
flagelos.
Os jovens ali estavam para ouvir (mais uma vez) uma palavra
de repúdio ao descalabro reinante. Haviam perdido a manhã de
um sábado (era sábado, ainda
por cima) para ouvir amenidades
sobre um Rio de Janeiro dos tempos do rei, intrigas de comadres,
meirinhos e barbeiros, ou, o que
era pior, um poeta defasado evocando um Recife que eles não conheciam nem faziam questão de
conhecer.
Isso aconteceu recentemente,
mas há pior. Em 1964, fui convidado a fazer uma palestra sobre
um clássico do expressionismo
alemão, "O Gabinete do Dr. Caligari". Eu havia escrito uns três ou
quatro artigos sobre o filme no
"Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil" e a Cinemateca do
Museu de Arte Moderna promoveu um ciclo sobre o expressionismo alemão.
Lá fui eu, preparado para comentar um dos clássicos do cinema mundial. Era início de março,
a crise política fervia, os militares
preparavam-se para depor o presidente da República, inaugurando os que vieram a ser chamados
de anos de chumbo.
Falei o que devia. Jovens se levantaram e protestaram. Com o
país em chamas, como podia um
jornalista fazer os outros perderem tempo com um filme de 1919,
um doutor maluco que hipnotizava um louco e, por meio desse
louco, cometia crimes numa Alemanha sombria e distante?
Foi uma pena. O pensamento
único daqueles jovens não percebeu que, na fábula do dr. Caligari, estava o anúncio não apenas
do nazismo mas de todos os anos
de chumbo que desabam sobre a humanidade.
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