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DRAUZIO VARELLA
O ermitão
Cumprimentou o sobrinho como se o visse todo dia, apertou minha mão sem olhar
ALGO TERRÍVEL devia ter acontecido na vida de Seu Prudêncio. Era a única explicação
que Alberto encontrava para a vida
do tio às margens do rio Jahu, uma
hora a remo de Sobradinho, a comunidade mais próxima.
Contratamos Alberto para dirigir
o barco Escola da Natureza numa
viagem de 16 horas rio Negro acima,
até a boca do Jahu, caminho que na
vazante é cortado por bancos de
areia capazes de encalhar os marinheiros mais experientes.
Magro, de rosto miúdo, educado
ao falar, Alberto, por necessidade de
sobrevivência, havia sido piaçabeiro
e pescador de peixes ornamentais
na região de Barcelos, afamado
construtor de casas no baixo rio Negro, barqueiro, mecânico e lavrador.
Morava a três horas de Manaus,
num igarapé próximo à comunidade
de Santa Maria, com a esposa de
meia idade, a sogra, índia tucano que
não falava português, o cunhado e a
filha mais nova, mãe de uma menina
de colo. Ao passarmos pela fiscalização do Ibama na foz do Jahu, Alberto falou da existência desse tio, habitante da margem esquerda, e do desejo de visitá-lo.
A casinha parecia abandonada ao
lado de uma mangueira florida. As
palhas mal cobriam metade do teto,
e as tábuas das paredes laterais eram
tão poucas que deixavam o interior
devassado: uma rede, um par de sapatos gastos, a calça e duas camisetas penduradas num prego, três caçarolas entortadas pelo uso, um saco
de farinha pela metade, uma cuia,
um fogãozinho improvisado com
quatro tijolos e uma lata d'água.
Precedido pelo cachorro esquálido, seu Prudêncio chegou da floresta
com o facão e a espingarda. A pele
marcada pelo sol, a barba branca e o
dente solitário contrastavam com a
solidez da postura e a exuberância
dos braços de remador.
Cumprimentou o sobrinho com a
naturalidade de quem o visse todos
os dias, apertou minha mão sem
olhar, deixou os sapatos ao pé da escada e entrou na casa. Ao sair, encheu a cuia no saco de farinha, derramou-a numa vasilha com água,
amassou-a com a mão e juntou uma
cabeça de peixe sob o olhar excitado
do cachorro, que saltou sobre a comida ainda no ar.
Terminada a operação, agarrou
um punhado de farinha, acocorou-se na soleira da porta, perguntou se
estávamos servidos e não disse mais
nada. Em movimentos concatenados, jogava a farinha na direção da
boca com precisão e mastigava os
grãos duros com o dente único, sem
desconforto aparente.
Alberto perguntou como ia a saúde, o roçado de mandioca, se a tempestade que destruíra o telhado havia sido forte, se havia peixes, caça e
se as águas na cheia chegavam até a
casa. Apesar das respostas monossilábicas quase inaudíveis e do olhar
perdido, o interesse do sobrinho não
parecia molestar o tio. Tanto que arrisquei perguntar:
-O senhor não sente falta de conversar com alguém?
-Converso com o silêncio.
Depois de uma pausa longa, Alberto explicou que ficava triste em vê-lo
naquele desamparo e, por isso, repetia o convite feito em outras oportunidades:
-Vem embora com a gente, tio. O
senhor fica lá em casa, com a família.
Seu Prudêncio agradeceu; estava
bem ali, nada lhe faltava. O sobrinho,
então, insistiu em que pelo menos
mudasse para junto do pessoal de
Sobradinho. Antes não o tivesse feito! O velho ergueu-se num salto e se
pôs a vociferar como se pudesse ser
ouvido pela comunidade distante:
-Pras profundezas do abismo,
cambada de bêbado falador, de mulher bisbilhoteira, de velho debochado. Enquanto Deus me der visão,
não chego perto. Diabo, demônio,
satanás zas-trás! Pros quintos dos
inferno ermo!
Quando terminou, com a face afogueada, pôs-se a dar voltas na casa
em passos rápidos, gesticulando,
grunhindo, resmungando impropérios desconexos. Ao passar pela
mangueira parava subitamente,
cuspia para os lados, esmurrava o
peito, chutava o tronco com um pé,
depois com outro, e gritava: "Sai tinhoso!" Feito sombra, o cachorro
seguia o dono à distância prudente.
Depois de não sei quantas voltas,
seu Prudêncio estancou a cinco metros de nós, respirou fundo, emitiu
um som gutural que assustou o cachorro, esfregou o rosto suado e ficou imóvel.
Passamos algum tempo naquele
silêncio, quebrado pelo vozerio distante dos macacos guariba. Quando
começou a escurecer, saímos na direção do rio. Ele veio atrás, mudo,
com o cachorro. Antes de subirmos
na voadeira ancorada na margem,
Alberto pediu-lhe a benção:
-Deus te abençoe, meu filho, respondeu tranqüilo.
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