São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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DRAUZIO VARELLA

O ermitão

Cumprimentou o sobrinho como se o visse todo dia, apertou minha mão sem olhar

ALGO TERRÍVEL devia ter acontecido na vida de Seu Prudêncio. Era a única explicação que Alberto encontrava para a vida do tio às margens do rio Jahu, uma hora a remo de Sobradinho, a comunidade mais próxima.
Contratamos Alberto para dirigir o barco Escola da Natureza numa viagem de 16 horas rio Negro acima, até a boca do Jahu, caminho que na vazante é cortado por bancos de areia capazes de encalhar os marinheiros mais experientes.
Magro, de rosto miúdo, educado ao falar, Alberto, por necessidade de sobrevivência, havia sido piaçabeiro e pescador de peixes ornamentais na região de Barcelos, afamado construtor de casas no baixo rio Negro, barqueiro, mecânico e lavrador. Morava a três horas de Manaus, num igarapé próximo à comunidade de Santa Maria, com a esposa de meia idade, a sogra, índia tucano que não falava português, o cunhado e a filha mais nova, mãe de uma menina de colo. Ao passarmos pela fiscalização do Ibama na foz do Jahu, Alberto falou da existência desse tio, habitante da margem esquerda, e do desejo de visitá-lo.
A casinha parecia abandonada ao lado de uma mangueira florida. As palhas mal cobriam metade do teto, e as tábuas das paredes laterais eram tão poucas que deixavam o interior devassado: uma rede, um par de sapatos gastos, a calça e duas camisetas penduradas num prego, três caçarolas entortadas pelo uso, um saco de farinha pela metade, uma cuia, um fogãozinho improvisado com quatro tijolos e uma lata d'água.
Precedido pelo cachorro esquálido, seu Prudêncio chegou da floresta com o facão e a espingarda. A pele marcada pelo sol, a barba branca e o dente solitário contrastavam com a solidez da postura e a exuberância dos braços de remador.
Cumprimentou o sobrinho com a naturalidade de quem o visse todos os dias, apertou minha mão sem olhar, deixou os sapatos ao pé da escada e entrou na casa. Ao sair, encheu a cuia no saco de farinha, derramou-a numa vasilha com água, amassou-a com a mão e juntou uma cabeça de peixe sob o olhar excitado do cachorro, que saltou sobre a comida ainda no ar.
Terminada a operação, agarrou um punhado de farinha, acocorou-se na soleira da porta, perguntou se estávamos servidos e não disse mais nada. Em movimentos concatenados, jogava a farinha na direção da boca com precisão e mastigava os grãos duros com o dente único, sem desconforto aparente.
Alberto perguntou como ia a saúde, o roçado de mandioca, se a tempestade que destruíra o telhado havia sido forte, se havia peixes, caça e se as águas na cheia chegavam até a casa. Apesar das respostas monossilábicas quase inaudíveis e do olhar perdido, o interesse do sobrinho não parecia molestar o tio. Tanto que arrisquei perguntar:
-O senhor não sente falta de conversar com alguém?
-Converso com o silêncio.
Depois de uma pausa longa, Alberto explicou que ficava triste em vê-lo naquele desamparo e, por isso, repetia o convite feito em outras oportunidades:
-Vem embora com a gente, tio. O senhor fica lá em casa, com a família.
Seu Prudêncio agradeceu; estava bem ali, nada lhe faltava. O sobrinho, então, insistiu em que pelo menos mudasse para junto do pessoal de Sobradinho. Antes não o tivesse feito! O velho ergueu-se num salto e se pôs a vociferar como se pudesse ser ouvido pela comunidade distante:
-Pras profundezas do abismo, cambada de bêbado falador, de mulher bisbilhoteira, de velho debochado. Enquanto Deus me der visão, não chego perto. Diabo, demônio, satanás zas-trás! Pros quintos dos inferno ermo!
Quando terminou, com a face afogueada, pôs-se a dar voltas na casa em passos rápidos, gesticulando, grunhindo, resmungando impropérios desconexos. Ao passar pela mangueira parava subitamente, cuspia para os lados, esmurrava o peito, chutava o tronco com um pé, depois com outro, e gritava: "Sai tinhoso!" Feito sombra, o cachorro seguia o dono à distância prudente.
Depois de não sei quantas voltas, seu Prudêncio estancou a cinco metros de nós, respirou fundo, emitiu um som gutural que assustou o cachorro, esfregou o rosto suado e ficou imóvel.
Passamos algum tempo naquele silêncio, quebrado pelo vozerio distante dos macacos guariba. Quando começou a escurecer, saímos na direção do rio. Ele veio atrás, mudo, com o cachorro. Antes de subirmos na voadeira ancorada na margem, Alberto pediu-lhe a benção:
-Deus te abençoe, meu filho, respondeu tranqüilo.


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