São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2008

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Revival reflete crise de dramaturgia

Para autores e diretores, remontagens no teatro revelam falta de textos inéditos de qualidade; produtores discordam

Amir Haddad, responsável por versão de "Brincando...", vê falta de "inquietação" em produção recente e artistas sem "ligação com seu lugar"


Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Reynaldo Gianecchini e Camila Morgado em cena da peça "Doce Deleite', que costura esquetes cômicos de Alcione Araújo

LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

A estréia do monólogo "Brincando em Cima Daquilo" em São Paulo, amanhã, dá impulso definitivo à onda de remontagens de textos bem-sucedidos na década de 80 que toma a cena paulistana, depois de passar pelo Rio.
A peça estrelada por Debora Bloch se junta a "O Mistério de Irma Vap" e "Doce Deleite" no "revival" oitentista -que toma ares de tributo a Marília Pêra, envolvida nas produções originais das três peças (leia quadro nesta página).
Dramaturgos ouvidos pela reportagem fazem ressalvas à maré saudosista; produtores contemporizam.
Alcione Araújo, autor dos esquetes de "Doce Deleite", diz que ficou surpreso com o êxito da remontagem protagonizada por Camila Morgado e Reynaldo Gianecchini -29.929 espectadores em quatro meses de temporada carioca, apesar de críticas pouco entusiasmadas da imprensa local. Ele sugere três hipóteses para a boa acolhida: a possível perenidade das histórias, a estagnação na percepção de comédia por parte das platéias ou a regressão do próprio humor brasileiro.
"Com o fim da ditadura e dos antagonismos mais explícitos, o nosso teatro se associou ao entretenimento e deixou de ser uma indagação mais densa sobre o homem no espaço social. As questões políticas e sociais que motivaram a minha geração se tornaram programa de governo; os artistas se desimcumbiram dessa missão [levantar bandeiras político-sociais]".
Para ele, "diante de um horizonte sem grandes nuances", a objetividade do produtor teatral o faz recorrer a títulos que emplacaram no passado. "Hoje, no Brasil, essa ideologia do resultado imediatista vingou, do sindicalismo à vida cultural."
Os autores que poderiam renovar essa engrenagem, observa Araújo, têm as atenções voltadas para outras áreas. "As pessoas que têm algum talento para a escrita e para a narrativa dramática estão optando pela TV ou pelo cinema. O teatro deixou de ser um formulador de idéias, ainda não encontrou uma linguagem que vá mais fundo no homem."

Sem inquietação
O autor e diretor Amir Haddad, responsável pela dramaturgia de "Brincando em Cima Daquilo", faz coro no que se refere à falta de material inédito de qualidade: "Não sinto tendências, modernidade na dramaturgia brasileira atual. Faltam textos novos que a gente se sinta estimulado a montar. A inquietação fica reduzida a alguns núcleos".
Ele insere a crise da cena nacional num contexto global de falência "da dramaturgia do teatro burguês realista". "Era necessário haver um teatro que rompesse a ideologia e falasse da decadência -o que ainda não temos coragem de fazer."
Haddad frisa, entretanto, que a situação brasileira é especialmente grave por causa da "quebra de um pacto social entre artistas, vida cultural e país":
"A partir daí, a produção perdeu muito em qualidade. Passamos a ser terra de ninguém, e assunto nenhum nos parecia suficientemente interessante. Nos internacionalizamos sem nenhum compromisso. Vinte anos de ditadura e mais um período neoliberal violento foram suficientes para acabar com as ligações dos artistas com seu lugar. Isso produziu um empobrecimento geral."
E sobe o tom das críticas. "O sistema de estrelas se implantou sem responsabilidade. A coisa brasileira ficou "farinha pouca, meu pirão primeiro"."
O diretor avalia ser compreensível que produtores busquem montagens que "não sejam investimentos a fundo perdido", mas acha que os das peças de agora erraram a mão:
"Remontar esses textos não significa nada. A remontagem de "Doce Deleite" é de um vazio de dramaturgia absoluto. E "Irma Vap" jamais será o acontecimento que foi naquela época [86-97] por causa de dois atores maravilhosos [Marco Nanini e Ney Latorraca]. A da Debora [com dramaturgia dele] é a mais interessante, pois é uma releitura de acordo com os tempos de hoje".

Produtores
A produtora Andrea Francez, de "O Mistério de Irma Vap", discorda. "Os grandes textos têm de ser remontados, como se faz com [William] Shakespeare e [Bertolt] Brecht." Para ela, "sair para pesquisar" novos textos não é tão fácil "quanto se gostaria". "Seria interessante que houvesse um banco de peças na internet."
Eduardo Barata, produtor de "Brincando..." e "Doce Deleite", também julga que "essas dramaturgias não envelheceram". "Várias gerações não assistiram a esses espetáculos. Acho justo remontar para elas."


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