São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Onde estão os homens?


Onde estão os atores? Restam poucos; Frank Langella, com sua discreta intensidade, é um deles

NOVA YORK - Vamos falar de homens. Vamos falar de Frank Langella. Quem? Precisamente, leitores. O mundo desconhece Frank Langella. Mas pergunto aos meus botões se Langella não será o maior ator vivo. Os botões respondem que sim e eu concordo com eles. Mas quem concorda comigo?
Imagino os leitores abanando negativamente a cabeça e citando os incontornáveis Robert de Niro ou Al Pacino. Respondo ao ceticismo dos leitores com o último filme em que De Niro e Pacino surgem juntos na tela. O filme estreou recentemente em Nova York, intitula-se "Righteous Kill" ("As Duas Faces da Lei"), foi dirigido por Jon Avnet e apresenta os dois nomes sagrados do "método" Stanislavski como policiais em busca de um vigilante. Desconfiamos que o vigilante é De Niro porque o próprio surge, várias vezes durante o filme, em confissão gravada em vídeo como autor dos crimes sangrentos.
Mas o final desmonta essa suspeita básica, que aliás só convencia os débeis: a narrativa é previsível; a direção é preguiçosa; e De Niro e Pacino são o melhor epitáfio para os excessos do "método".
Robert de Niro é coleção de tiques nervosos, como se tivesse Parkinson facial. É impossível olhar para o seu rosto, uma máscara feita de esgares paródicos e autoparódicos, sem rir de pena ou compaixão. Será isto um ator?
Al Pacino sofre de problema igual, ou seja, de histrionismo galopante. Grita quando não deve; fala baixo quando deveria falar alto. É sobretudo pose e nenhuma substância. Tal como De Niro, Pacino cumpre a rotina sem ponta de imaginação, entrega ou verdade.
Frank Langella é o oposto desse cenário. Tem 70 anos e, em cinema ou teatro, existe em Langella uma discreta intensidade dramática que se converteu na segunda natureza do ator.
Em filme, relembro Langella em "Starting Out in the Evening" (começando na noite), um trabalho recente de Andrew Wagner que, opinião pessoal, é o melhor retrato sobre a vida de um escritor a que assisti no cinema moderno.
O filme não teve os aplausos que merecia e praticamente não existiu fora das salas da América. Mas "Starting Out in the Evening" oferece Langella como Leonard Schiller, um velho escritor do Upper West Side que ainda acredita na seriedade, e mesmo na "santidade", da sua arte. Em tempos de celebridades ocas, como o nosso, é quase comovente assistir às demandas de Schiller para ser fiel a uma escrita adulta, ainda que essas demandas sejam razão principal para seu bloqueio criativo.
Até que certo dia surge em cena uma ninfeta com pretensões intelectuais, disposta a escrever tese sobre Schiller. Este resiste às luzes da exposição pública; mas perante as insistências da jovem, o escritor começa a ceder; vêm os primeiros encontros; e estabelece-se entre ambos, apesar da diferença etária, uma relação de cumplicidade literária que, felizmente, nunca cede ao clichê nabokoviano e sentimental.
Um momento do filme amplifica a grandeza de Langella como ator: o momento em que este, já doente e impossibilitado de escrever, não permite que a sua interlocutora o trate de forma condescendente ou paternal. Tudo o que vemos é uma bofetada, uma bofetada seca, dada e recebida em silêncio. Se não viram "Starting Out in the Evening", corram para a internet.
E corram para Nova York. Langella regressa à Broadway na peça clássica de Robert Bolt, "A Man for All Seasons" (um homem para todas as estações). O texto, recriação dramática dos acontecimentos políticos que levaram à condenação à morte de Thomas More no reinado do priápico Henrique 8º, foi filme de sucesso em 1966. Mas a peça é superior ao filme por causa de Langella. O seu Thomas More, pleno de refinada ironia humanista, dá à personagem um sabor moderno que está ausente em Paul Scofield, o Thomas More do filme.
Mas não apenas pela ironia; ao procurar a coexistência impossível entre o seu catolicismo e o protestantismo nascente do monarca, o Thomas More de Langella oferece-nos uma personagem que é nossa contemporânea: um homem existencialmente dividido entre o dever público e a sua consciência privada, e incapaz de os conciliar para sua terrena perdição. Quando Thomas More abraça a filha em gesto de despedida final, somos nós que nos despedimos dele, assombrados pela grandeza sacrificial da sua recusa.
Onde estão os homens? Onde estão os atores? Na semana em que Paul Newman partiu para o outro lado da margem, restam poucos. Frank Langella é um deles. Aproveitem.

jpcoutinho@folha.com.br



Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Literatura: Lygia Fagundes Telles fala sobre Machado de Assis
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.