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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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DANÇA

Alain Buffard coloca em cena o direito e o avesso de todos nós

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Tudo branco: nas paredes, no chão, até no ar, no silêncio. Um corpo comum que se apresenta a si mesmo. "Good Boy" (1998), solo emblemático da carreira do francês Alain Buffard, apresentado segunda no Sesc Consolação, explora imagens do corpo nesse ambiente asséptico. É a dança na fronteira das artes plásticas: quase uma instalação, com o tempo próprio do que se deixa ver como objeto.
Buffard entra em cena na penumbra e se apruma, atrás de quatro lâmpadas penduradas. O palco é geometricamente desenhado por luzes frias, compondo pequenos ambientes. Quando elas se acendem, Buffard está nu. Apresenta seu corpo -de frente, de lado, de costas-, depois se volta ao som de um andante barroco. Nu como uma estátua, mas sem aspirar às perfeições.
Em seguida começa a vestir cuecas umas sobre as outras. Vai até o centro do palco e acende um triângulo de pequenas lanternas. Põe-se de quatro e se deixa examinar. O corpo se dobra sobre si e vai se transformando num estranho ser vertebrado, quase irreconhecível. Avesso e direito se confundem. Os braços viram asas, ou hastes, que ele tenta firmar no chão.
Mais adiante, lida com um bloco de caixas de remédio, dramatizando a metáfora hospitalar, que é também alusão autobiográfica. Tenta carregar o bloco inteiro, mas as caixas caem. De falso salto alto (frasco vazio preso com esparadrapo no tornozelo), Buffard desfila pelo palco, ao som do folk de vanguarda: "Good boy, good boy...".
O silêncio da cena só é quebrado pela música em três momentos: 1) o barroco do início; 2) o folk do salto alto: "Seu pai se ajoelha e agradece ao Senhor pelo bom menino que ele tem: "good boy, good bum" [bom menino, bom idiota]"; e 3) no final, uma sátira do balé, ao som de "New York, New York" só com sons de buzinas.
Irônico e difícil, o espetáculo incomoda a platéia, que se torna parte do espetáculo. A dança aqui faz alianças com a "body art" e a performance, uma das marcas da vanguarda nos anos 90. Sua economia de meios e sua aspereza, num espírito anti-afetivo, são quebradas de dentro quando o corpo se joga contra a parede e se debate, percutindo as profundezas. As metáforas são impossíveis de contornar e tornam vulnerável um discurso tão assumidamente duro.
Na última cena, Buffard vai tirando e empilhando as cuecas (depois de uma segunda rodada de sobreposições). Ficam no chão como uma torre torta. Com uma lanterna virada sobre o próprio rosto, o bailarino sai pela lateral, num grande buraco negro. Ficamos nós, nossas roupas, nossos silêncio e nosso vazio.


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