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DANÇA
Alain Buffard coloca em cena o direito e o avesso de todos nós
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Tudo branco: nas paredes, no
chão, até no ar, no silêncio.
Um corpo comum que se apresenta a si mesmo. "Good Boy"
(1998), solo emblemático da carreira do francês Alain Buffard,
apresentado segunda no Sesc
Consolação, explora imagens do
corpo nesse ambiente asséptico. É
a dança na fronteira das artes
plásticas: quase uma instalação,
com o tempo próprio do que se
deixa ver como objeto.
Buffard entra em cena na penumbra e se apruma, atrás de
quatro lâmpadas penduradas. O
palco é geometricamente desenhado por luzes frias, compondo
pequenos ambientes. Quando
elas se acendem, Buffard está nu.
Apresenta seu corpo -de frente,
de lado, de costas-, depois se
volta ao som de um andante barroco. Nu como uma estátua, mas
sem aspirar às perfeições.
Em seguida começa a vestir cuecas umas sobre as outras. Vai até o
centro do palco e acende um
triângulo de pequenas lanternas.
Põe-se de quatro e se deixa examinar. O corpo se dobra sobre si e
vai se transformando num estranho ser vertebrado, quase irreconhecível. Avesso e direito se confundem. Os braços viram asas, ou
hastes, que ele tenta firmar no
chão.
Mais adiante, lida com um bloco de caixas de remédio, dramatizando a metáfora hospitalar, que
é também alusão autobiográfica.
Tenta carregar o bloco inteiro,
mas as caixas caem. De falso salto
alto (frasco vazio preso com esparadrapo no tornozelo), Buffard
desfila pelo palco, ao som do folk
de vanguarda: "Good boy, good
boy...".
O silêncio da cena só é quebrado
pela música em três momentos: 1)
o barroco do início; 2) o folk do
salto alto: "Seu pai se ajoelha e
agradece ao Senhor pelo bom menino que ele tem: "good boy, good
bum" [bom menino, bom idiota]"; e 3) no final, uma sátira do
balé, ao som de "New York, New
York" só com sons de buzinas.
Irônico e difícil, o espetáculo incomoda a platéia, que se torna
parte do espetáculo. A dança aqui
faz alianças com a "body art" e a
performance, uma das marcas da
vanguarda nos anos 90. Sua economia de meios e sua aspereza,
num espírito anti-afetivo, são
quebradas de dentro quando o
corpo se joga contra a parede e se
debate, percutindo as profundezas. As metáforas são impossíveis
de contornar e tornam vulnerável
um discurso tão assumidamente
duro.
Na última cena, Buffard vai tirando e empilhando as cuecas
(depois de uma segunda rodada
de sobreposições). Ficam no chão
como uma torre torta. Com uma
lanterna virada sobre o próprio
rosto, o bailarino sai pela lateral,
num grande buraco negro. Ficamos nós, nossas roupas, nossos
silêncio e nosso vazio.
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