UOL


São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em "Dogville", diretor dinamarquês expõe perversões da América belicista em criativa reinvenção do espaço cinematográfico

Von Trier solta os cachorros contra os EUA

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando lançou "Dançando no Escuro", o dinamarquês Lars von Trier foi atacado por fazer um filme ambientado nos EUA sem jamais ter ido lá.
Um artista de menos fibra e talento teria talvez baixado a crista e feito em seguida uma obra mais aceitável ao paladar americano. Com Von Trier, a reprimenda teve efeito oposto: reforçou seu antiamericanismo e levou-o a conceber a trilogia "América, Terra de Possibilidades".
"Dogville", que fecha com chumbo grosso a 27ª Mostra de Cinema de São Paulo, é a primeira parte dessa trilogia.
É uma obra extraordinária, por sua coragem política e por sua ousadia formal. Ou melhor: sua coragem política está embutida em sua ousadia formal.
A começar pela definição do espaço da ação. A Dogville do filme é um vilarejo junto às Montanhas Rochosas, durante a Grande Depressão dos anos 30.
Mas o que vemos na tela é apenas um imenso palco com indicações riscadas no chão ("casa de Fulano", "mina abandonada" etc.), como a planta de uma cidade em tamanho natural.
Completam a ambientação uns poucos objetos de cena. Três bancos, um sino e um órgão compõem, por exemplo, o centro religioso e comunitário.
A vida modorrenta dessa comunidade é sacudida pela chegada repentina de uma forasteira, a jovem Grace (Nicole Kidman), que foge de gângsters e da polícia acumpliciada com eles.
Convencida pelo intelectual local, um rapaz idealista e aspirante a escritor, chamado ironicamente Thomas Edison Jr. (Paul Bettany), a população resolve acolher a fugitiva, inicialmente sem pedir nada em troca.
À medida que percebem a extensão de seu poder (pois a moça está à sua mercê), os habitantes de Dogville passam a escravizá-la e oprimi-la de todas as formas.
Narrado em "off" em tom de parábola infantil (pelo ator John Hurt), o drama de Grace desvela um mecanismo cruel de exercício coletivo da força contra o "outro" e tudo o que este encerra de diferente e perturbador.
A chegada de Grace desata pulsões até então ocultas dos cidadãos de Dogville: o egoísmo, a cobiça, o sadismo. No centro de tudo, o desejo sexual reprimido pelo puritanismo, cuja outra face é a pornografia culpada.
"Dogville" desconcertou a crítica. Mesmo reconhecendo o talento e a ousadia do cineasta dinamarquês, houve quem chamasse o filme de fascista, por julgar que ele aponta para a inviabilidade de qualquer forma civilizada de coesão social.
Mas é claro que Von Trier não está falando do "homem em geral" e que concebe os horrores de Dogville como uma espécie de magma de onde surge a América atual, bélica e expansionista. No final, as fotos jornalísticas da Grande Depressão, ao som do inglês David Bowie cantando "Young Americans", não deixam dúvidas.
Mas a radicalidade de "Dogville" está menos no discurso que na linguagem. Ao construir um país no "espaço vazio", passando ostensivamente ao largo de preocupações como a verossimilhança, Von Trier investe na imaginação contra o naturalismo rasteiro e a hipertrofia expositiva que reinam na cultura atual.
Talvez seja essa a ação mais política que um artista pode abraçar em nosso tempo.


Dogville
Idem
    



Texto Anterior: 27ª Mostra Internacional de Cinema de SP: Experiências conduzem "Sexo: Feminino"
Próximo Texto: Documentário: Oliver Stone busca "Persona Non Grata"
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.