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Em "Dogville", diretor dinamarquês expõe perversões da América belicista em criativa reinvenção do espaço cinematográfico
Von Trier solta os cachorros contra os EUA
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando lançou "Dançando
no Escuro", o dinamarquês
Lars von Trier foi atacado por fazer um filme ambientado nos
EUA sem jamais ter ido lá.
Um artista de menos fibra e talento teria talvez baixado a crista e
feito em seguida uma obra mais
aceitável ao paladar americano.
Com Von Trier, a reprimenda teve efeito oposto: reforçou seu antiamericanismo e levou-o a conceber a trilogia "América, Terra
de Possibilidades".
"Dogville", que fecha com
chumbo grosso a 27ª Mostra de
Cinema de São Paulo, é a primeira
parte dessa trilogia.
É uma obra extraordinária, por
sua coragem política e por sua ousadia formal. Ou melhor: sua coragem política está embutida em
sua ousadia formal.
A começar pela definição do espaço da ação. A Dogville do filme
é um vilarejo junto às Montanhas
Rochosas, durante a Grande Depressão dos anos 30.
Mas o que vemos na tela é apenas um imenso palco com indicações riscadas no chão ("casa de
Fulano", "mina abandonada"
etc.), como a planta de uma cidade em tamanho natural.
Completam a ambientação uns
poucos objetos de cena. Três bancos, um sino e um órgão compõem, por exemplo, o centro religioso e comunitário.
A vida modorrenta dessa comunidade é sacudida pela chegada
repentina de uma forasteira, a jovem Grace (Nicole Kidman), que
foge de gângsters e da polícia
acumpliciada com eles.
Convencida pelo intelectual local, um rapaz idealista e aspirante
a escritor, chamado ironicamente
Thomas Edison Jr. (Paul Bettany),
a população resolve acolher a fugitiva, inicialmente sem pedir nada em troca.
À medida que percebem a extensão de seu poder (pois a moça
está à sua mercê), os habitantes de
Dogville passam a escravizá-la e
oprimi-la de todas as formas.
Narrado em "off" em tom de
parábola infantil (pelo ator John
Hurt), o drama de Grace desvela
um mecanismo cruel de exercício
coletivo da força contra o "outro"
e tudo o que este encerra de diferente e perturbador.
A chegada de Grace desata pulsões até então ocultas dos cidadãos de Dogville: o egoísmo, a cobiça, o sadismo. No centro de tudo, o desejo sexual reprimido pelo
puritanismo, cuja outra face é a
pornografia culpada.
"Dogville" desconcertou a crítica. Mesmo reconhecendo o talento e a ousadia do cineasta dinamarquês, houve quem chamasse
o filme de fascista, por julgar que
ele aponta para a inviabilidade de
qualquer forma civilizada de coesão social.
Mas é claro que Von Trier não
está falando do "homem em geral" e que concebe os horrores de
Dogville como uma espécie de
magma de onde surge a América
atual, bélica e expansionista. No
final, as fotos jornalísticas da
Grande Depressão, ao som do inglês David Bowie cantando
"Young Americans", não deixam
dúvidas.
Mas a radicalidade de "Dogville" está menos no discurso que
na linguagem. Ao construir um
país no "espaço vazio", passando
ostensivamente ao largo de preocupações como a verossimilhança, Von Trier investe na imaginação contra o naturalismo rasteiro
e a hipertrofia expositiva que reinam na cultura atual.
Talvez seja essa a ação mais política que um artista pode abraçar
em nosso tempo.
Dogville
Idem ![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
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