|
Texto Anterior | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Dramas e tragédias
No fim de semana passado,
em São Paulo, fui ao teatro
duas vezes.
No sábado, assisti a "4.48 Psicose" de Sarah Kane. É o monólogo
final da escritora e dramaturga
inglesa, que, após tê-lo escrito em
1998, suicidou-se com determinação (primeiro as pílulas, logo, tendo sido salva a tempo, a forca definitiva). Nelson de Sá montou o
texto como uma peça a duas vozes (quase três), nos subterrâneos
do Sesc Belenzinho, dentro de um
enorme tanque cilíndrico que
desce no chão. O quadro é perfeito: o fundo do poço.
A fala de Sarah é impactante
por ser exata. Tem as duas caraterísticas essenciais de qualquer
drama subjetivo: irredutível e
cruelmente trivial.
Enquanto Sarah articula sua
demanda de amor impossível, na
parede circular do tanque aparecem rostos, bulas de remédios e
imagens do mundo lá fora. Para
quem se engaja (e quem não se
engaja?) no caminho do drama
subjetivo, a realidade é moída e
aspirada na direção de um ralo
que é o próprio umbigo do sujeito.
Não há história que valha, nem
coletividade; nada além de uma
contabilidade de dores e remédios, na qual a gente sempre sai
perdendo.
Não seria mal se Sarah, tomada
por uma repentina paixão montanhesca, pudesse escalar as paredes do cilindro bem na hora em
que elas mostram as piores convulsões de nosso mundo. Quem
sabe, ela conseguiria, com unhas
e dentes, inserir seu drama na
tragédia humana. E, assim, salvar-se.
Entre drama e tragédia oscilamos o tempo inteiro. Pedimos que
a tragédia (o destino que nos quer
frágeis e mortais, a natureza que
nos castiga, a história que nos
atropela) não apague nossos pequenos dramas (e eu, nisso tudo,
ninguém dirá o que eu passei?). E
pedimos também que a tragédia
dê a nossa vida uma dignidade e
um sentido que se perdem nos
dramas. É o que deseja, caricaturalmente, um pai, quando, perplexo diante da dor amorosa de
um filho ou de uma filha adolescente, exclama: "E a Somália? E o
câncer?".
Mas o balanço normal de nossa
época é: drama 3, tragédia 0. Pior:
em regra, quando tentamos atenuar a miséria subjetiva fazendo
apelo à história e à coletividade,
que a afogariam em valores e sentidos mais amplos, esquecemos a
tragédia. Preferimos acreditar em
ficções gloriosas e amanhãs que
cantarão: corra atrás de uma
bandeira e esqueça.
Estava com essas reflexões
quando, no domingo, fui assistir
(mas por que esperei tanto?), no
Teatro Oficina, a "Os Sertões - O
Homem 1ª Parte - Do Pré-Homem à Revolta". É o segundo dos
quatro momentos que Zé Celso
decidiu consagrar a uma encenação de "Os Sertões". Corresponde
à parte do livro em que Euclydes
da Cunha apresenta as origens do
homem americano e brasileiro,
especialmente do sertanejo.
Foi uma das experiências teatrais mais fortes e comovedoras
de minha vida. Na lembrança, se
compara a uma noite de 1969,
quando Luca Ronconi montou o
"Orlando Furioso" de Ariosto na
praça do "duomo" de Milão.
A analogia é sentimental. Não
sei se eram mesmo anos difíceis
para a Itália, mas sei que eu vivia
num furor abstrato, inconformado com o país que não mudava.
Olhava ao redor de mim e não reconhecia uma nação à qual valesse a pena pertencer. Apenas conseguia falar com quem pensasse
exatamente como eu: estava a fim
de ir embora. Naquela noite de
69, estava encerrado na massa
que enchia a praça, todos olhando para o céu: no ar, acima de
nós, máquinas e atores transformavam o texto mais bonito da
Renascença numa extraordinária festa popular. De repente, ser
italiano parecia ter sentido. Não
pela festa, mas pela dignidade de
uma história e de uma cultura
compartilhadas.
Ao assistir à peça do teatro Oficina, a emoção foi a mesma. Mais
forte, na verdade. A construção
do brasileiro segundo Zé Celso é
uma aventura feroz, carnal e
amorosa. Pesa sobre ela o prognóstico ameaçador das teorias raciais nas quais Euclydes da Cunha acreditava: que futuro nos
reserva a "inferioridade" do mestiço? Pesa a diversidade extrema:
como conviverão mulato, cafuzo,
sertanejo, português, gaúcho,
bandeirante paulista e por aí vai?
Pesa o passivo das violências sobre os corpos e as almas, da escravidão, dos estupros e dos extermínios. Mas a própria qualidade
trágica da história faz a grandeza
e a alegria selvagem desta improvável comunidade de destino.
Sem ficções gloriosas ou promessas de amanhãs cantantes, o
"O Homem - 1ª Parte" proclama a
dignidade do ser brasileiro. É a
tragédia que redime os dramas
subjetivos que nos chamam para
o fundo do poço.
No fim, paramos na calçada para tomar uma cerveja e medir a
relação entre a história que acabávamos de reviver e, lá em frente, o começo do Minhocão, símbolo da dureza urbana do Brasil de
hoje. Enquanto conversávamos
com um dos atores, Ricardo Bittencourt, um jovem aproximou-se para elogiá-lo. Carioca, estava
de passagem por São Paulo, pois
acabava de chegar ao país depois
de dois anos trabalhando no exterior. Com os olhos molhados de
lágrimas, batia a mão no coração: "Obrigado, obrigado, entrei
no teatro meio por acaso, que loucura, logo hoje acabo entendendo
por que voltei ao Brasil". Ganhou
um abraço.
"O Homem - 1ª Parte" fica em
cartaz, no teatro Oficina, aos sábados e domingos, só mais duas
semanas, até 9 de novembro.
"4.48 Psicose" está em cartaz
aos sábados e domingos, no Sesc
Belenzinho, até 7 de dezembro.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Documentário: Oliver Stone busca "Persona Non Grata" Índice
|