São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jardim das delícias

Mustafa Ozer/France Presse
Mulher muçulmana passa diante de loja de lingeries em Istambul, na Turquia, país que negocia entrada na União Européia


Muçulmana, autora do romance altamente erótico "Amêndoa", fala sobre os tabus do mundo árabe

LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK

Um ato de contestação e de júbilo. É assim que Nedjma resume seu "Amêndoa" (Objetiva, R$ 33,90, 208 págs.), um romance erótico de alta voltagem que talvez seja o primeiro vindo de uma mulher muçulmana contemporânea. Uma provocação, necessária para resgatar algo que foi confiscado das mulheres árabes.
Dona de um texto delicado, mas nada sutil, Nedjma nos apresenta Badra, uma mulher de cerca de 50 anos do norte da África forçada a se casar muito jovem com um homem a quem não ama, mas nem por isso conformada com uma vida amorosa e sexual estática. E pela voz da personagem dá vazão a uma enxurrada de paixões e angústias que nem sempre o véu e o silêncio imposto a tantas consegue conter.
"Amêndoa" foi lançado em 13 países, nenhum deles muçulmano. "Se os muçulmanos não lêem Freud, Kafka, Sade, Faulkner, Irving, Cioran e outros tantos, por que você iria querer que lessem a mim?", diz a autora.
Nedjma assina sob pseudônimo, não divulga fotos e não revela onde vive -ela foi criada no Marrocos. Mas diz não sofrer pressão por conta da obra, que resgata uma antiga tradição erótica da literatura árabe interrompida por tabus criados mais recentemente. "O mundo árabe vive de uma subcultura populista, subordinada aos poderes políticos e religiosos", afirma.
"Todos sabem que o mundo árabe é vítima de três tabus: política, religião e sexo. Uma tripla couraça de chumbo que consome toda a energia vital, toda a verve e toda a audácia da vida intelectual de Casablanca até Meca."
Com "Amêndoa", Nedjma ajuda a puir essa couraça. A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu, por e-mail, à Folha.
 

Folha - A sra. corou na primeira vez que escreveu sobre sexo. Ainda cora ou algo mudou?
Nedjma -
Ainda coro. Tenho um temperamento muito pudico. Minhas audácias de linguagem ou de escrita são sempre ditadas pela raiva. E algumas vezes pela vontade de rir e de provocar. E eu não sou Badra, esse relato não é uma autobiografia, mesmo que contenha muitos elementos pessoais. Para voltar à sua pergunta, no que me diz respeito nada mudou. Eu vivo em um estado de irritação constante contra a vulgaridade, a mentira, a impostura e a injustiça. E continuo a protestar, a denunciar o escândalo e o engodo.

Folha - Seu livro deixa a impressão de que tais pensamentos estão muito presentes entre muitas mulheres desse lado do mundo. A ausência de mulheres muçulmanas na literatura erótica se explica só pela censura?
Nedjma -
Ninguém consegue refrear a sexualidade, nem as leis, nem as tradições. E, quando refreada, a sexualidade usa caminhos alternativos para viver e se exprimir. Já a ausência de literatura erótica no mundo árabe não diz respeito somente às mulheres mas também aos homens. Todos sabem que o mundo árabe é vítima de três tabus: política, religião e sexo. Uma tripla couraça de chumbo que consome toda a energia vital, toda a verve e toda a audácia da vida intelectual de Casablanca até Meca. O islã não tem culpa nenhuma dessa derrocada. Foram os muçulmanos, árabes e whahabitas, que desfiguraram o islã e lhe atribuíram os fascismos e ostracismos nascidos de sua ignorância tanto em relação ao islã original quando àquele dos séculos 20 e 21. As mulheres, por sua vez, sofrem em primeiro lugar por causa de seus homens, já que são mantidas deliberadamente afastadas da parte essencial da vida política, econômica e intelectual.

Folha - A sra. usa pseudônimo. Que tipo de pressão e alívio lhe foram impostos pelo livro?
Nedjma -
Eu não senti pressão nenhuma. Quis escrever este livro e o escrevi. Com muito prazer. E tenho a intenção de tornar a fazê-lo! O pseudônimo não passa de uma "camisinha"! Estou me protegendo da mesquinharia, das cusparadas e dos insultos. Estou me protegendo da polícia que teria me interrogado e me fichado como "Puta potencial. Elemento perigoso. A vigiar."
Alívio? Por quê? Eu levo uma vida normal, sem nenhuma frustração, a não ser talvez uma frustração intelectual que me obriga a vir a Paris regularmente para me abastecer de livros, filmes e música. Tive a sorte de ir à universidade em uma região onde o analfabetismo bate recordes.
Exerço uma profissão pela qual sou apaixonada e tenho total liberdade de movimentos e de idéias... contanto que não as saia espalhando por aí!

Folha - Nada está mudando na educação das marroquinas?
Nedjma -
Nada vai mudar enquanto os direitos fundamentais não estiverem ao alcance de todos: direito à saúde, à educação, à dignidade. No mundo árabe, nós não somos cidadãos. Somos apenas súditos ou servos. Enquanto tudo isso existir, há poucas chances das mulheres evoluírem. Mesmo assim, tenho esperança.

Como a sra. vê a relação entre o islã e a condição feminina?
Nedjma -
Posso testemunhar que o islã é inocente de todas as infâmias a respeito das mulheres de que é acusado. O islã é baseado em um livro, o Alcorão, ato inaugural e fundador de uma civilização que iluminou durante séculos vários continentes, misturou as raças e línguas mais diversas. O problema do islã são os muçulmanos, especialmente os árabes, que o transformaram desde o princípio em sua moeda política e cultural, apesar da "mensagem" ser universal. As mulheres são vítimas de uma leitura restritiva e obtusa de determinados versículos do Alcorão. Uma leitura masculina, é claro. Os homens têm dificuldade de admitir que determinados versículos do Alcorão caducaram no decorrer da história. Alguns livres-pensadores tentaram dinamitar esses arcaísmos, mas as forças da inércia saíram vitoriosas. Para conciliar islã e modernidade, basta voltar ao "espírito do Alcorão", uma mensagem de liberdade, igualdade, inteligência e fraternidade, em vez de tomá-lo ao pé da letra.

Folha - Seu livro foi publicado em algum país muçulmano? A sra. acha que ele pode afetar as mulheres de alguma forma?
Nedjma -
Francamente, não me importo [se foi publicado]. Se eles preferem ler as fatwas [decretos religiosos] dos xeques e outros charlatões, estão livres para fazê-lo. Não, não acho que meu livro será publicado em um país árabe nem muçulmano. E não sei o que meu livro poderia lhes trazer. Um testemunho de liberdade? Uma coragem renovada? Algum conforto? Não sei mesmo. E não tenho a intenção de ser um modelo nem um exemplo. Eu respeito demais os outros para dar lições a quem quer que seja.


Texto Anterior: Programação
Próximo Texto: Trechos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.