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"CONTOS E NOVELAS REUNIDAS"
Ainda pouco conhecido, autor é pioneiro da literatura de imigração judaica no Brasil
Edição resgata a ficção do "maldito" Rawet
BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
As moscas e o cheiro ruim levaram os vizinhos a pedir
ajuda. Quando os bombeiros arrombaram a porta, encontraram
o corpo num canto do apartamento, em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. O homem, um
cigarro à mão, cercado por velas
queimadas e livros de filosofia,
morto havia já quatro dias, foi enterrado inicialmente como indigente.
Essas foram, conforme relatos
já publicados, as circunstâncias
da morte de Samuel Rawet (1929-1984), um dos mais curiosos e menos conhecidos dentre os melhores nomes da ficção brasileira do
século 20.
Nascido em Klimontow, na Polônia, Rawet chegou ao Brasil em
1936 e viveu nos subúrbios pobres
da zona norte do Rio de Janeiro
até os "vinte e poucos anos", como declarou.
Formado em engenharia em 53,
integrou nos anos 50 e 60 a equipe
de calculistas que, com Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, ergueu os
principais edifícios de Brasília,
onde viveu a partir de 1962 (com
um interregno carioca entre 1970
e 1974). Os testemunhos dão conta de um homem solitário, de trato difícil, andarilho tresloucado
pelas ruas da capital federal.
Após flertar e se frustrar com o
teatro, Rawet tornou-se nacionalmente conhecido com seu livro de
estréia, "Contos do Imigrante", de
1956. Vieram depois mais quatro
coletâneas e duas novelas, além de
participação em antologias, volumes de ensaios e artigos.
Nos "Contos do Imigrante",
obra pioneira da literatura de imigração judaica no Brasil, as cinco
primeiras narrativas têm como
temas a inadequação, o estranhamento, a culpa, a dor de emigrados da Europa Central, já incorporada, destaque-se, a "experiência" do Holocausto. As outras cinco transpiram as mesmas ansiedades, o mesmo dolorido isolamento, o mesmo sufoco suburbano, porém com protagonistas e
linguajar "locais" (imigrantes
nordestinos, gente pobre, negros).
Características
Esse primeiro livro delineia o
restante da obra ficcional de Rawet, cujas características, como
resume André Seffrin no prefácio
da reunião de suas obras de ficção
publicada agora pela Civilização
Brasileira, são a presença de "personagens imersos na angústia da
inadaptação e da incomunicabilidade, a condição ambígua do imigrante (cindido entre dois mundos, duas linguagens), a experiência dramática do exílio (a condição judaica), a desagregação social, a marginalidade, a alienação".
Acrescentem-se doses de delírio, conflitos familiares, metalinguagem e a sofreguidão pungente
de uma ousada exposição de ódio,
tendo como cenário especialmente o Rio, cuja geografia é fartamente mencionada.
O mal-estar do autor com o
mundo e consigo próprio (uma
"tenebrosa intimidade com a angústia", diz Regina Igel em "Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros", Perspectiva) se expressa
de modo radical na relação conturbada que ele estabelece, ao menos desde os 15 anos de idade,
com sua origem judaica, com a
qual rompe violentamente no artigo "Kafka e a Mineralidade Judaica ou a Tonga da Mironga do
Kabuletê" (1977).
"Meu maior conflito, e não sei
se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal, e ligado à minha
condição de judeu, ou de ex-judeu, que mandou judaísmo e ambiência judaica às favas", afirmou
Rawet ao "Suplemento Literário
de Minas Gerais", em 1979.
A virulência, como teria de ser
num criador visceral, marca também a fatura singular de sua ficção. Ao destacar o hermetismo do
texto de Rawet, Berta Waldman,
em "Entre Passos e Rastros"
(também da Perspectiva), sintetiza seus traços lingüísticos:
"A economia do estilo, a elipse,
a organização sincopada da frase,
a tendência alusiva que remete a
sentidos fora das margens do texto formam um sistema cerrado
que espanta o leitor habituado a
ser conduzido pela mão".
Um exemplo, da novela "Abama", de 1964:
"(...) Mas o instante era o de sua
passagem, e com a descida, talvez
nunca mais voltasse àquela rua,
arrastava e cosia com dois olhos e
dois ouvidos os fiapos que o acaso
lhe lançara, e que, provavelmente,
algum dia, devolveria com um
grito, assim como o grito de parturiente, ou o grito de dor de
quem está sendo aliviado de terrível mal, devolveria com um grito
um vasto manto tecido de longas
caminhadas e de noites vazias
(...)".
Distúrbios
Há certo consenso no sentido de
que os ensaios e as especulações
filosóficas de Rawet não atingem
a altura de sua ficção e que muito
se devem, assim como seu comportamento (era visto nas ruas de
Brasília com uma gaiola para
"prender os ratos judeus"), a um
avanço gradual do que seriam
seus "distúrbios mentais".
Em qualquer hipótese, a oportuna reunião de seus contos e novelas resgata um polêmico e quase
esquecido grande autor, que Alfredo Bosi, ao citar "Contos do
Imigrante" na "História Concisa
da Literatura Brasileira", coloca
dentre os "signos de que esta [a
ficção introspectiva, em crise]
vem entrando numa era de pesquisa estética e de superação de
um "realismo" menor, convencional". Não é para qualquer um.
Bernardo Ajzenberg é autor dos romances "A Gaiola de Faraday" e "Variações Goldman", ambos pela editora Rocco, entre outros livros, e assessor executivo do Instituto Moreira Salles.
Contos e Novelas Reunidas
Autor: Samuel Rawet
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 49,90 (490 págs.)
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