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DRAUZIO VARELLA
Descoberta da vacina da poliomielite
Na minha infância, a poliomielite era doença epidêmica. Por toda parte encontrávamos
crianças que se locomoviam desengonçadas com a ajuda de aparelhos ortopédicos rústicos que
rangiam ao andar. Qualquer febre ou fraqueza num filho bastava para deixar os pais apavorados: seria paralisia infantil?
Nos anos 1960, no Hospital das
Clínicas, assisti a aulas nos célebres "pulmões de aço", tubos cilíndricos inventados em 1928, onde a criança era mantida deitada
permanentemente apenas com a
cabeça de fora, no interior dos
quais a ação de uma bomba de
vácuo diminuía e aumentava a
pressão para o ar ser inalado e expulso dos pulmões incapacitados
de respirar, por conta da flacidez
da musculatura encarregada de
fazê-lo. A dedicação dos médicos
e das enfermeiras responsáveis
pela unidade e a imagem das meninas e meninos imóveis dentro
daqueles aparelhos, capazes ainda de sorrir quando brincávamos
com eles, estão entre as imagens
mais tocantes que guardei dos
tempos de faculdade.
Para comemorar o cinqüentenário do Prêmio Nobel conferido
aos cientistas que criaram as condições básicas para o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite, o "New England Journal
of Medicine", uma das mais prestigiosas revistas médicas, acaba
de contar a história dessa descoberta.
Ela começa com John Enders, filho de banqueiros que o educaram para seguir nos negócios da
família, mas que se interessou por
literatura na Universidade de
Harvard, onde, por casualidade,
dividiu moradia com um colega
do curso de microbiologia. Contaminado pela paixão do outro, Enders se formou microbiologista
em 1930.
Dez anos mais tarde, conseguia
pela primeira vez isolar os vírus
da vaccínea e da gripe em culturas de tecidos mantidas em tubos
de ensaio, trabalho interrompido
em 1941 pela eclosão da Segunda
Guerra Mundial. Quando a guerra terminou, Enders foi convidado para chefiar um laboratório
no Children's Hospital, de Boston.
Lá, encontrou dois pediatras recém-formados, Tom Weller e
Fred Robbins, seus futuros parceiros na descoberta de uma aparente curiosidade laboratorial que
abriria caminho definitivo para a
obtenção da sonhada vacina contra a paralisia infantil.
Robbins semeou vírus da poliomielite em tecidos fetais mantidos
em tubo de ensaio, na presença de
um corante que mudava de cor de
acordo com a acidez ou alcalinidade do meio. Verificou que, enquanto as células não-infectadas
liberavam ácidos no meio de cultura tornando o corante amarelo,
as que continham o vírus não
modificavam a cor do corante.
Através desse método simples
conseguiram demonstrar que era
possível propagar o vírus da pólio
em cultura de tecidos. E que, ao
transferir o vírus de uma cultura
para outra em sucessivas passagens, ocorria diminuição progressiva da virulência, passo essencial
para a vacina.
Em 1954, Enders recebeu a notícia de que havia ganhado o Prêmio Nobel, mas, para surpresa geral, recusou-se a recebê-lo a menos que a honraria fosse dividida
com "aqueles que fizeram o trabalho". Sensibilizadas, as autoridades suecas decidiram agraciar
os três cientistas.
Atentos a esses avanços laboratoriais estavam dois cientistas de
ascendência judaica, ambiciosos
e reconhecidamente brilhantes:
Jonas Salk e Albert Sabin.
Salk havia trabalhado na Universidade de Nova York no desenvolvimento de uma vacina preparada com o vírus inativo da gripe.
Sabin, durante a guerra, na Universidade de Cincinnatti, havia
feito pesquisas com o vírus da
dengue e o da encefalite japonesa,
pragas que afligiam os soldados
americanos no Pacífico Sul.
Na busca da vacina contra a pólio, os dois cientistas perseguiram
caminhos diversos: Salk explorava preparações com vírus morto,
administradas por via intramuscular; Sabin explorava as propriedades do vírus vivo, atenuado,
administrado pela via oral.
A corrida entre os dois sofreu
influência decisiva de um terceiro
personagem, alheio ao ambiente
universitário: Daniel O'Connor,
advogado, ex-sócio do presidente
Roosevelt, a mais notória de todas as vítimas da doença, ao lado
de quem criou a Fundação Nacional para a Paralisia Infantil. Embora ambos pesquisadores tenham recebido fundos generosos
dessa fundação, a Salk coube a
parte do leão, porque O'Connor
ficou convencido de que ele estava mais próximo da vacina.
Depois de testar sua vacina em
pequenos grupos de crianças, Salk
recebeu apoio decisivo da fundação para realizar um estudo populacional memorável no qual
foram vacinados 1,8 milhão de escolares. Anunciado com espalhafato numa conferência de imprensa em abril de 1955, o sucesso
dos resultados obtidos transformaram Salk em herói nacional.
A aceitação imediata da vacina
Salk tornou muito difícil para Sabin a realização de testes em larga
escala nos Estados Unidos. Obsessivo na perseguição de suas convicções científicas, no entanto, ele
foi capaz de organizar em conjunto com pesquisadores soviéticos o estudo definitivo com a utilização da vacina oral em milhões
de crianças do leste europeu.
Além da facilidade da administração oral, a vacina Sabin apresentava a vantagem do baixo custo, da propriedade de estimular a
imunidade da mucosa intestinal
e de espalhar através das fezes o
vírus vivo, atenuado, capaz de
imunizar mesmo crianças não
vacinadas ao entrar em contato
com ele nas regiões desprovidas
de saneamento básico.
Graças ao trabalho conjunto
desses cientistas e dos que os antecederam nas primeiras pesquisas
com vírus conduzidas a partir do
início do século 20, a Organização
Mundial da Saúde iniciou em
1988 um programa de erradicação global da poliomielite. Minha
geração de médicos assistiu ao
fim da paralisia infantil em nosso
país. Em breve veremos o vírus
responsável por ela desaparecer
da face da Terra.
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