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NELSON ASCHER
Toma um fósforo, acende teu cigarro
Raridade antes do
século passado, o
tabaco tem relação com
a guerra moderna
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AS BOAS-MANEIRAS contemporâneas exigem que um passageiro tabagista peça ao motorista permissão para fumar em seu
táxi. Às vezes, se concedida, o taxista
aproveita para também fazê-lo e,
corrida afora, a conversa gira não raro em torno dos males do vício. Hoje
em dia ninguém parece lhe ignorar
os efeitos nocivos e, em qualquer
grupo profissional, classe social ou
faixa etária, informação a respeito é
o que não falta.
Quando um taxista me contou que
se apegara ao hábito durante o serviço militar, já que, nos turnos de sentinela, só conseguia se manter acordado com a ajuda do cigarro, lembrei-me da correlação histórica que
existe entre este e a guerra moderna.
Embora a disseminação do tabaco
fosse subproduto da descoberta da
América, o cigarro, antes do século
passado, era uma raridade, pois, em
geral, os ricos fumavam charuto e os
demais, cachimbo. Cigarros começaram a ser produzidos industrialmente nos anos da Primeira Guerra
Mundial para entreter soldados que,
entre a batalha recente, à qual mal
haviam sobrevivido, e a seguinte,
que seria quase decerto sua última,
morriam de tédio nas trincheiras.
Logo depois eclodiu a maior epidemia de todos os tempos, a Gripe
Espanhola, que matou em um ano
talvez dez vezes mais gente (aliás, jovem) do que balas e explosivos nos
quatro anteriores. E, como no entreguerras as tabacarias em muito da
Europa se converteram em monopólios reservados aos mutilados,
viúvas e órfãos do conflito, obstruir
ou criticar seu pobre negócio soaria
antipático e antipatriótico. Mesmo
assim, é provável que a industrialização do cigarro tenha rendido até
agora mais vítimas do que ambas, a
guerra e a epidemia, em conjunto.
Não conviria, portanto, fazer o
preciso para abolir o tabagismo?
Meu pai dizia-me que Mao Tse-tung acabara com o gravíssimo problema do ópio, que assolava a China
desde que o Império Britânico lhe
estimulara cinicamente o consumo,
executando meio milhão de opiômanos irrecuperáveis. Se é verdade
ou lenda, não sei, mas que, salvando
incontáveis vidas, a questão ali foi de
algum modo resolvida, foi. E se houve, a seguir, dezenas de milhões de
mortes precoces no país, elas decorreram sobretudo de causas naturais
como, por exemplo, o Grande Salto
Adiante, o Movimento das Cem Flores e a Revolução Cultural.
Que a China maoísta seja um caso
meio extremo não a impede de ilustrar nexos que vinculam quanto de
útil um governo ou Estado poderoso
é capaz de implementar com seus
aspectos e propensões, digamos,
menos saudáveis. A erradicação do
tabagismo é um bem indiscutível,
próximo do absoluto. Vale a pena,
no entanto, correr o risco de delegar
a alguém, a alguma instituição, a autoridade necessária para realizar um
objetivo tão desejável?
Aumenta o número de países europeus que proíbem o tabagismo em
recintos públicos. Se o adulto contemporâneo médio não admite que
parentes, amigos e, pior, chefes, sacerdotes ou estranhos o aconselhem
e, muito menos, que o obriguem a
abandonar o cigarro e, por que não,
beber com moderação, viver regradamente, casar-se virgem etc., será
que é uma boa idéia permitir, "para
nosso próprio bem", que políticos
eleitos ou não e burocratas anônimos o façam?
Policia existe para proteger do crime os cidadãos, não para bisbilhotar
sua intimidade. Se a oferta de criminosos no mercado caiu a ponto de
que os policiais podem ser dispensados daquela tarefa, em vez de lhes
inventar novas, não seria uma alternativa viável reduzir-lhes o contingente e, com isto, os impostos? E que
tal levar esta proposta às urnas?
Os regimes mais perigosos não são
tanto os que estréiam descendo o
cassetete nas pessoas (esses, um dia,
caem), quanto os que, com as melhores intenções, intrometem-se na
vida privada e se enraízam de vez no
poder. Tiranos eficazes principiam a
carreira virtuosamente, fazendo os
trens chegarem na hora, criando
empregos, construindo estradas,
abrindo escolas e hospitais. (François "Papa Doc" Duvalier era médico e ganhara seu apelido afetuoso
tratando dedicada e gratuitamente
os miseráveis do Haiti.) Quem não
sabe que, acima de qualquer vício
conhecido, o Estado também é nocivo à saúde, à liberdade individual e
ao bolso, não parou ainda para ler
História e fazer as contas.
Ser adulto não significa acertar
sempre, mas pressupõe tomar conscientemente as decisões que importam sobre a própria vida, assumindo
as conseqüências de cada escolha,
em especial das erradas, sem transferir culpas ou responsabilidades seja a pais e mestres, seja ao governo e
ao capitalismo internacional.
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