São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 2006

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NELSON ASCHER

Toma um fósforo, acende teu cigarro


Raridade antes do século passado, o tabaco tem relação com a guerra moderna

AS BOAS-MANEIRAS contemporâneas exigem que um passageiro tabagista peça ao motorista permissão para fumar em seu táxi. Às vezes, se concedida, o taxista aproveita para também fazê-lo e, corrida afora, a conversa gira não raro em torno dos males do vício. Hoje em dia ninguém parece lhe ignorar os efeitos nocivos e, em qualquer grupo profissional, classe social ou faixa etária, informação a respeito é o que não falta.
Quando um taxista me contou que se apegara ao hábito durante o serviço militar, já que, nos turnos de sentinela, só conseguia se manter acordado com a ajuda do cigarro, lembrei-me da correlação histórica que existe entre este e a guerra moderna. Embora a disseminação do tabaco fosse subproduto da descoberta da América, o cigarro, antes do século passado, era uma raridade, pois, em geral, os ricos fumavam charuto e os demais, cachimbo. Cigarros começaram a ser produzidos industrialmente nos anos da Primeira Guerra Mundial para entreter soldados que, entre a batalha recente, à qual mal haviam sobrevivido, e a seguinte, que seria quase decerto sua última, morriam de tédio nas trincheiras.
Logo depois eclodiu a maior epidemia de todos os tempos, a Gripe Espanhola, que matou em um ano talvez dez vezes mais gente (aliás, jovem) do que balas e explosivos nos quatro anteriores. E, como no entreguerras as tabacarias em muito da Europa se converteram em monopólios reservados aos mutilados, viúvas e órfãos do conflito, obstruir ou criticar seu pobre negócio soaria antipático e antipatriótico. Mesmo assim, é provável que a industrialização do cigarro tenha rendido até agora mais vítimas do que ambas, a guerra e a epidemia, em conjunto.
Não conviria, portanto, fazer o preciso para abolir o tabagismo?
Meu pai dizia-me que Mao Tse-tung acabara com o gravíssimo problema do ópio, que assolava a China desde que o Império Britânico lhe estimulara cinicamente o consumo, executando meio milhão de opiômanos irrecuperáveis. Se é verdade ou lenda, não sei, mas que, salvando incontáveis vidas, a questão ali foi de algum modo resolvida, foi. E se houve, a seguir, dezenas de milhões de mortes precoces no país, elas decorreram sobretudo de causas naturais como, por exemplo, o Grande Salto Adiante, o Movimento das Cem Flores e a Revolução Cultural.
Que a China maoísta seja um caso meio extremo não a impede de ilustrar nexos que vinculam quanto de útil um governo ou Estado poderoso é capaz de implementar com seus aspectos e propensões, digamos, menos saudáveis. A erradicação do tabagismo é um bem indiscutível, próximo do absoluto. Vale a pena, no entanto, correr o risco de delegar a alguém, a alguma instituição, a autoridade necessária para realizar um objetivo tão desejável?
Aumenta o número de países europeus que proíbem o tabagismo em recintos públicos. Se o adulto contemporâneo médio não admite que parentes, amigos e, pior, chefes, sacerdotes ou estranhos o aconselhem e, muito menos, que o obriguem a abandonar o cigarro e, por que não, beber com moderação, viver regradamente, casar-se virgem etc., será que é uma boa idéia permitir, "para nosso próprio bem", que políticos eleitos ou não e burocratas anônimos o façam?
Policia existe para proteger do crime os cidadãos, não para bisbilhotar sua intimidade. Se a oferta de criminosos no mercado caiu a ponto de que os policiais podem ser dispensados daquela tarefa, em vez de lhes inventar novas, não seria uma alternativa viável reduzir-lhes o contingente e, com isto, os impostos? E que tal levar esta proposta às urnas?
Os regimes mais perigosos não são tanto os que estréiam descendo o cassetete nas pessoas (esses, um dia, caem), quanto os que, com as melhores intenções, intrometem-se na vida privada e se enraízam de vez no poder. Tiranos eficazes principiam a carreira virtuosamente, fazendo os trens chegarem na hora, criando empregos, construindo estradas, abrindo escolas e hospitais. (François "Papa Doc" Duvalier era médico e ganhara seu apelido afetuoso tratando dedicada e gratuitamente os miseráveis do Haiti.) Quem não sabe que, acima de qualquer vício conhecido, o Estado também é nocivo à saúde, à liberdade individual e ao bolso, não parou ainda para ler História e fazer as contas.
Ser adulto não significa acertar sempre, mas pressupõe tomar conscientemente as decisões que importam sobre a própria vida, assumindo as conseqüências de cada escolha, em especial das erradas, sem transferir culpas ou responsabilidades seja a pais e mestres, seja ao governo e ao capitalismo internacional.


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