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ANÁLISE
A sedução do mundo de Truman
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha
À primeira vista "The Truman
Show - O Show da Vida" aparece
como uma espécie de fábula destinada a ilustrar nosso triste destino
de animais iludidos e -como se
diz até não aguentar mais- alienados. Ou seja, como mais uma
denúncia do poder invasivo da televisão que decide nossos ideais e
configura nosso mundo.
Todos gostaríamos de sair desta
prisão imposta por manipuladores
paranóicos que devem se considerar deuses.
Uma vez ultrapassada esta primeira reação, resta uma pergunta
que alguns críticos dos Estados
Unidos levantaram insidiosamente.
Eles argumentaram que é fácil
imaginar a sedução de "O Show da
Vida" assim como o filme a apresenta, ou seja, resumida a seus momentos cruciais. Mas por que dois
bilhões de pessoas em 220 países
sintonizariam durante 30 anos o
mundo de Truman?
A coisa deslizou para gozação: é
possível imaginar que a gente goste de olhar ou escutar no escuro
quando Truman cumpre seus deveres conjugais, mas o que acontece quando Truman vai ao banheiro, a gente olha ou não? Ou ainda
qual seria a graça de poder -no
meio da noite- ligar a televisão e
ver nosso herói roncando?
Ora, acontece que, assistindo ao
filme, nos parece plausível que
uma interminável exibição da banalidade cotidiana conquiste platéias do mundo inteiro, noite e dia,
durante anos a fio.
O cúmulo é que Christof, o diretor e inventor do programa "O
Show da Vida", poderia, se assim
realmente quisesse, ter produzido
uma "vida" muito diferente para
Truman.
Lembremos o princípio do show:
Truman é o único que não é um
ator, todos os outros -mulher,
amigos, pai, mãe etc.- agem segundo o script previsto por Christof. Ora, o script tece ao redor de
Truman o enredo de uma vida que
parece ter sido concebida para ser
o mais comum possível.
Christof poderia oferecer um
Truman afligido por catástrofes financeiras a cada três dias, ganhando na loteria, perdendo tudo na
Bolsa, casando a cada três meses
etc.
Mas não é esta sua escolha. No
show, o extraordinário só acontece
por acidente. Quer seja quando um
dos atores ou figurantes, animado
por algum furor ilustrado, tenta
informar Truman sobre o seu estado e obriga a produção a intervir.
Quer seja quando algum imprevisto parece comprometer o sereno
correr dos dias (por exemplo,
quando uma "estrela" cai do
"céu").
A produção, em suma, quer nos
oferecer a chance de contemplar a
banalidade em si. Esta é a sua força
e a sua sedução.
Mas como funciona? Por que o
mundo inteiro olharia fascinado
para o desenrolar pacífico da vida
de Truman?
O tempo das gestas heróicas acabou. Justamente quando Truman
em sua infância anuncia que gostaria de se tornar explorador, sua
professora assinala que infelizmente ele chegou atrasado: não
existe mais nada no mundo para
ser descoberto.
Nossa cultura -cansamos de
aprender- atribui valor ao parecer bem mais do que aos atos. Não
somos nem valemos o que conseguimos fazer, mas o que conseguimos parecer ou aparentar aos
olhos dos outros. Por isso um show
que outorgue dignidade literária
(melhor dito, dignidade de filme) à
vida cotidiana é o show de nossos
sonhos.
Nele a vida de todos os dias ganha a qualidade que nos importa
mais do que qualquer outra: ela se
torna digna de ser olhada.
Naturalmente, nessas condições,
a única e última grande aventura é
sair do estúdio no qual vivemos
devido ao olhar dos outros.
Fiji -se é que esse lugar existe-
é isso: o mundo fora do alcance de
visão da câmera, o mundo onde seria possível viver para qualquer
coisa que não seja o olhar dos outros. Será que isso existe?
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