São Paulo, sexta, 30 de outubro de 1998

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ANÁLISE
A sedução do mundo de Truman

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

À primeira vista "The Truman Show - O Show da Vida" aparece como uma espécie de fábula destinada a ilustrar nosso triste destino de animais iludidos e -como se diz até não aguentar mais- alienados. Ou seja, como mais uma denúncia do poder invasivo da televisão que decide nossos ideais e configura nosso mundo.
Todos gostaríamos de sair desta prisão imposta por manipuladores paranóicos que devem se considerar deuses.
Uma vez ultrapassada esta primeira reação, resta uma pergunta que alguns críticos dos Estados Unidos levantaram insidiosamente.
Eles argumentaram que é fácil imaginar a sedução de "O Show da Vida" assim como o filme a apresenta, ou seja, resumida a seus momentos cruciais. Mas por que dois bilhões de pessoas em 220 países sintonizariam durante 30 anos o mundo de Truman?
A coisa deslizou para gozação: é possível imaginar que a gente goste de olhar ou escutar no escuro quando Truman cumpre seus deveres conjugais, mas o que acontece quando Truman vai ao banheiro, a gente olha ou não? Ou ainda qual seria a graça de poder -no meio da noite- ligar a televisão e ver nosso herói roncando?
Ora, acontece que, assistindo ao filme, nos parece plausível que uma interminável exibição da banalidade cotidiana conquiste platéias do mundo inteiro, noite e dia, durante anos a fio.
O cúmulo é que Christof, o diretor e inventor do programa "O Show da Vida", poderia, se assim realmente quisesse, ter produzido uma "vida" muito diferente para Truman.
Lembremos o princípio do show: Truman é o único que não é um ator, todos os outros -mulher, amigos, pai, mãe etc.- agem segundo o script previsto por Christof. Ora, o script tece ao redor de Truman o enredo de uma vida que parece ter sido concebida para ser o mais comum possível.
Christof poderia oferecer um Truman afligido por catástrofes financeiras a cada três dias, ganhando na loteria, perdendo tudo na Bolsa, casando a cada três meses etc.
Mas não é esta sua escolha. No show, o extraordinário só acontece por acidente. Quer seja quando um dos atores ou figurantes, animado por algum furor ilustrado, tenta informar Truman sobre o seu estado e obriga a produção a intervir. Quer seja quando algum imprevisto parece comprometer o sereno correr dos dias (por exemplo, quando uma "estrela" cai do "céu").
A produção, em suma, quer nos oferecer a chance de contemplar a banalidade em si. Esta é a sua força e a sua sedução.
Mas como funciona? Por que o mundo inteiro olharia fascinado para o desenrolar pacífico da vida de Truman?
O tempo das gestas heróicas acabou. Justamente quando Truman em sua infância anuncia que gostaria de se tornar explorador, sua professora assinala que infelizmente ele chegou atrasado: não existe mais nada no mundo para ser descoberto.
Nossa cultura -cansamos de aprender- atribui valor ao parecer bem mais do que aos atos. Não somos nem valemos o que conseguimos fazer, mas o que conseguimos parecer ou aparentar aos olhos dos outros. Por isso um show que outorgue dignidade literária (melhor dito, dignidade de filme) à vida cotidiana é o show de nossos sonhos.
Nele a vida de todos os dias ganha a qualidade que nos importa mais do que qualquer outra: ela se torna digna de ser olhada.
Naturalmente, nessas condições, a única e última grande aventura é sair do estúdio no qual vivemos devido ao olhar dos outros.
Fiji -se é que esse lugar existe- é isso: o mundo fora do alcance de visão da câmera, o mundo onde seria possível viver para qualquer coisa que não seja o olhar dos outros. Será que isso existe?



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