São Paulo, sexta, 30 de outubro de 1998

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CINEMA - ESTRÉIAS
"Carne Trêmula' é Almodóvar político

Divulgação
A atriz Angela Molina no mais recente filme de Almodóvar, que também foi exibido na Mostra de São Paulo


ALCINO LEITE NETO
Editor do Mais!

Pedro Almodóvar é um diretor de cinema à medida de sua época. Seria um exagero pedir mais a quem oferece tanto ao espectador.
Seu novo filme, "Carne Trêmula", que estréia hoje, é um espetáculo luxuriante, polifônico, que deixa muita gente aturdida e tomada por emoções sem diagnóstico (antigas? atuais? vulgares? superiores?). Nunca se sabe direito com quais de nossos sentimentos Almodóvar está lidando.
No conjunto, o filme é quase uma parábola, a partir das agruras amorosas de um jovem da periferia de Madri, cuja história tem um prólogo extraordinário e um epílogo otimista e conciliatório. A parábola diz respeito ao fim do franquismo na Espanha e à liberdade reencontrada no país, mas também fala da paralisia dos ricos e do desespero dos pobres. "Carne Trêmula" é um Almodóvar tacitamente político.
No prólogo, uma mulher dá à luz dentro de um ônibus em uma noite vazia de janeiro de 1970.
Feliz com esta prova de eficiência do serviço público de circulação, a burocracia franquista decadente homenageia o bebê e a mãe -que é prostituta- com um passe livre de ônibus para toda a vida.
Vinte anos depois, o menino virou um rapagão e trabalha na Pizza Hut -como motoboy. Muita coisa parece ter mudado na Espanha, mas o benefício da prefeitura mantém sua validade.
O passe vai levar o rapaz ao encontro de uma garota rica que o rejeita, vai permitir que ele fique vagando de lotação pela cidade, vai trazê-lo de volta ao apartamento da moça, onde o acaso por fim tramou uma armadilha trágica.
O motoboy não é nada na vida, mas acabará tornando-se o catalisador do destino de quatro personagens, que estão em melhor situação social. Suas histórias passarão assim a se entrecruzar, coincidir, colidir, como se todos estivessem ligados uns aos outros não por obra do mundo, mas dos astros.
É o mundo, porém, o que interessa a Almodóvar. Quanto mais o diretor "fecha" o círculo de relações, mais preciso se torna o seu observatório de sentimentos e conflitos. Aonde ele quer chegar? Se o espectador não entender que Almodóvar filma aqui processos psicológicos inteiros, mas sempre associados a um drama social de grande escala, só lhe restará lágrimas.
"Carne Trêmula" fala de um tempo "em que se perdeu o medo na Espanha" e as pessoas voltaram a circular pelas ruas, a abrir as janelas e a enfrentar as sobras interiores do franquismo.
Sobras que foram cristalizando em ressentimentos, culpas e terrores cotidianos, responsáveis por impedir a livre circulação dos afetos, o reconhecimento do outro.
Aquele rapaz da periferia, fruto metafórico da "libertação" da Espanha, é quem irá lançar todos no desassossego. Por não pertencer a lugar nenhum, por vir das bordas do mundo, ele é o elemento capaz de "circular" livremente entre estruturas rígidas, a fim de desestabilizá-las e promover o encontro de cada um dos personagens do passado com sua tragédia.
Com extrema maestria, Almodóvar conseguiu reunir neste filme o quadro social e a observação íntima, a crítica e a confidência, a urgência de um mundo novo e os pesadelos do antigo, o apelo concreto da história e a lei transformadora do desejo. Talvez não seja o seu melhor filme, mas é o que mais nos diz respeito.
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Filme: Carne Trêmula Produção: Espanha, 1997 Direção: Pedro Almodóvar Com: Francesca Neri, Javier Bardem Quando: a partir de hoje, nos cines Metrô Tatuapé 6, Espaço Unibanco 1 e circuito



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