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ARNALDO JABOR
Governo Collor foi marco na vida brasileira
Ainda não li o livro "Notícias do
Planalto - A Imprensa e Fernando
Collor", de Mario Sergio Conti,
mas já sinto lhe a importância.
Pelas folheadas que dei, pelo que a
imprensa diz, nervosa e fascinada, creio que ele busca a inclusão
dos jornalistas (e de todos) no
drama do país, tirando-lhes o privilégio de contemplação "de fora", acabando com sua "pureza"
diante de mares de lama que eles
julgam não navegar.
Com esse livro, confirmo minha
crença de que Collor foi um marco
na vida brasileira. Collor foi um
quadro vivo da nacionalidade,
com a nitidez esquemática das
burletas. Parecia uma caricatura
didática, um "napoleão bonaparte" que agiu contra si mesmo,
quase um revolucionário masoquista que denunciou os crimes de
sua classe, cometendo-os com luminoso descaro.
Collor anunciou o fim de uma
época, com seu discurso falsamente "moderno". Collor foi o mais
perfeito exemplo das "idéias fora
do lugar", falando em "progresso"
com os pés metidos no melaço patrimonialista, escravista e corrupto do velho mundo de Alagoas.
Ele e sua corte foram uma galeria de corruptos explícitos, bonecos de Angelo Agostini, "angelis",
"chicos carusos" ao vivo. Os dentinhos de Rosane Collor, a barriga
de Joãozinho Malta, a competência profissional de PC -nosso
Gilberto Freyre da corrupção que
tanto nos ensinou sobre o Brasil- , os perfis gatunos de gente
como "Clepto" Falcão, a turma da
Operação Uruguai, os decotes, os
laquês, as gravatas Hermés, os sabadões sertanejos, os adultérios
cafajestes, Zélia dançando com o
"Boto", a dor-de-corno de Pedro,
a beleza de Thereza, musa e origem do impeachment... Oh, meu
Deus, que maravilhoso panorama
de merda!
Assistimos, lívidos, a uma saga
greco-alagoana, a uma mistura
de Nelson Rodrigues com Sérgio
Buarque de Holanda. Collor botou toda a sociedade olhando o
poder pelo buraco da fechadura
da Casa da Dinda, nos colocou na
vergonhosa posição de espectadores vitimizados e otários - o que,
aliás, sempre fomos sem saber.
Collor mostrou a fragilidade de
nossas instituições e nos provou,
na exibição de suas escrotidões,
que nossa democracia é "para inglês ver", que a corrupção é endêmica e oficial, que estamos indefesos com esse sistema judiciário,
que o velho Brasil institucional é
uma farsa que precisa de reformas.
E, finalmente, Collor nos ensinou a fazer o impeachment, acordando a "sociedade civil", pedindo-nos que fôssemos às ruas. Collor nos modernizou com seu arcaísmos. Nunca mais seremos os
mesmos depois de Collor.
Os perigos da pureza
Collor foi um paraíso para os
jornalistas, propiciando-nos críticas burlescas e deliciosas crônicas
de chanchadas. No entanto, Collor viciou os jornalistas no esquematismo da análise fácil, porque
os traços grossos podem nos levar
a esquecer a imensa sofisticação
dos crimes públicos.
Hoje ficou muito mais difícil entender e escrachar o conjunto da
política nacional. O projeto de
FHC partiu com uma busca de
uma "complexidade", tentando
- dentro da irreal democracia
brasileira - tirar reformas possíveis sobre ela mesma. Se, em parte, esse projeto tem fracassado,
deve-se, em parte, a analistas que
não lhe concederam uma gota de
confiança, denunciando de saída
a tal "complexidade aliancista"
de FHC apenas como reacionária, emprestando ao simplismo
tintas "viris" e "radicais".
Depois de Collor, ficamos viciados num "voyeurismo" jornalístico com mão única para Brasília,
esquecendo-nos do resto do país e
de nós mesmos como co-responsáveis por nosso destino.
Depois de Collor, passamos a
crer que o Brasil é um problema
só "político", quando a grande
descoberta de nossas decepções é
que a sociedade é muito mais
"culpada" do que parece, é que os
problema nacionais são muito
mais entranhados em nossa alma, em nossa "antropologia", em
nossas tradições do que imaginávamos.
Alberto Dines escreveu corretamente que, por exemplo, nesse
episódio do narcotráfico, se os jornais gastassem um pouco mais de
dinheiro pagando correspondentes nos Estados, teríamos sabido
mais cedo de toda essa rede de lama. Mas, claro, é bem menos trabalhoso e mais barato ficar de
olhos postados preguiçosamente
só em Brasília.
Esta época de incertezas que vivemos, que nenhuma análise desvendou ainda, essas ideologias
sem clareza não devem nos remeter a um esquematismo nostálgico e rancoroso. Não devem nos levar a utopias regressivas e simplismos rasteiros.
Temos de suportar a penumbra
dos caminhos, com a humildade
de analisar parcialidades, difíceis
vínculos, ligações imprecisas.
Depois de 20 anos de ditadura
-quando nos santificamos com
a aura de "vítimas nobres"- vimos, no governo Sarney, as "vítimas da ditadura" saquearam o
Estado , levando-nos à hiperinflação e à vergonha. Depois de Collor, aprendemos que a democracia formal não bastava, que precisávamos democratizar as instituições políticas e jurídicas, sanear as terras onde medram o crime e a ingovernabilidade.
Nós, jornalistas, temos de nos
precaver contra as seduções do
poder. Mas também devemos tomar cuidado com a sedução de
uma "pureza" imaginária que
nos absolveria dos erros do país.
Há muitos tipos de picaretas
possíveis, além dos que pegam
"bola" dos poderosos. Há o picareta do "bem", o picareta "reserva
moral", o picareta das certezas "a
priori", o picareta "revolucionário tardio", o picareta "isento e
objetivo". A grande lição desses
anos, para os jornalistas e todos
os cidadãos, deveria ser a autocrítica como peça essencial na análise da vida brasileira, com nossa
inclusão nos erros nacionais.
O Brasil é um grande erro coletivo, do qual somos cúmplices.
Talvez seja essa a lição do livro de
Mario Sergio Conti, que ainda
não li.
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