São Paulo, Terça-feira, 30 de Novembro de 1999


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ARNALDO JABOR
Governo Collor foi marco na vida brasileira

Ainda não li o livro "Notícias do Planalto - A Imprensa e Fernando Collor", de Mario Sergio Conti, mas já sinto lhe a importância. Pelas folheadas que dei, pelo que a imprensa diz, nervosa e fascinada, creio que ele busca a inclusão dos jornalistas (e de todos) no drama do país, tirando-lhes o privilégio de contemplação "de fora", acabando com sua "pureza" diante de mares de lama que eles julgam não navegar.
Com esse livro, confirmo minha crença de que Collor foi um marco na vida brasileira. Collor foi um quadro vivo da nacionalidade, com a nitidez esquemática das burletas. Parecia uma caricatura didática, um "napoleão bonaparte" que agiu contra si mesmo, quase um revolucionário masoquista que denunciou os crimes de sua classe, cometendo-os com luminoso descaro.
Collor anunciou o fim de uma época, com seu discurso falsamente "moderno". Collor foi o mais perfeito exemplo das "idéias fora do lugar", falando em "progresso" com os pés metidos no melaço patrimonialista, escravista e corrupto do velho mundo de Alagoas.
Ele e sua corte foram uma galeria de corruptos explícitos, bonecos de Angelo Agostini, "angelis", "chicos carusos" ao vivo. Os dentinhos de Rosane Collor, a barriga de Joãozinho Malta, a competência profissional de PC -nosso Gilberto Freyre da corrupção que tanto nos ensinou sobre o Brasil- , os perfis gatunos de gente como "Clepto" Falcão, a turma da Operação Uruguai, os decotes, os laquês, as gravatas Hermés, os sabadões sertanejos, os adultérios cafajestes, Zélia dançando com o "Boto", a dor-de-corno de Pedro, a beleza de Thereza, musa e origem do impeachment... Oh, meu Deus, que maravilhoso panorama de merda!
Assistimos, lívidos, a uma saga greco-alagoana, a uma mistura de Nelson Rodrigues com Sérgio Buarque de Holanda. Collor botou toda a sociedade olhando o poder pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, nos colocou na vergonhosa posição de espectadores vitimizados e otários - o que, aliás, sempre fomos sem saber.
Collor mostrou a fragilidade de nossas instituições e nos provou, na exibição de suas escrotidões, que nossa democracia é "para inglês ver", que a corrupção é endêmica e oficial, que estamos indefesos com esse sistema judiciário, que o velho Brasil institucional é uma farsa que precisa de reformas.
E, finalmente, Collor nos ensinou a fazer o impeachment, acordando a "sociedade civil", pedindo-nos que fôssemos às ruas. Collor nos modernizou com seu arcaísmos. Nunca mais seremos os mesmos depois de Collor.

Os perigos da pureza
Collor foi um paraíso para os jornalistas, propiciando-nos críticas burlescas e deliciosas crônicas de chanchadas. No entanto, Collor viciou os jornalistas no esquematismo da análise fácil, porque os traços grossos podem nos levar a esquecer a imensa sofisticação dos crimes públicos.
Hoje ficou muito mais difícil entender e escrachar o conjunto da política nacional. O projeto de FHC partiu com uma busca de uma "complexidade", tentando - dentro da irreal democracia brasileira - tirar reformas possíveis sobre ela mesma. Se, em parte, esse projeto tem fracassado, deve-se, em parte, a analistas que não lhe concederam uma gota de confiança, denunciando de saída a tal "complexidade aliancista" de FHC apenas como reacionária, emprestando ao simplismo tintas "viris" e "radicais".
Depois de Collor, ficamos viciados num "voyeurismo" jornalístico com mão única para Brasília, esquecendo-nos do resto do país e de nós mesmos como co-responsáveis por nosso destino.
Depois de Collor, passamos a crer que o Brasil é um problema só "político", quando a grande descoberta de nossas decepções é que a sociedade é muito mais "culpada" do que parece, é que os problema nacionais são muito mais entranhados em nossa alma, em nossa "antropologia", em nossas tradições do que imaginávamos.
Alberto Dines escreveu corretamente que, por exemplo, nesse episódio do narcotráfico, se os jornais gastassem um pouco mais de dinheiro pagando correspondentes nos Estados, teríamos sabido mais cedo de toda essa rede de lama. Mas, claro, é bem menos trabalhoso e mais barato ficar de olhos postados preguiçosamente só em Brasília.
Esta época de incertezas que vivemos, que nenhuma análise desvendou ainda, essas ideologias sem clareza não devem nos remeter a um esquematismo nostálgico e rancoroso. Não devem nos levar a utopias regressivas e simplismos rasteiros.
Temos de suportar a penumbra dos caminhos, com a humildade de analisar parcialidades, difíceis vínculos, ligações imprecisas.
Depois de 20 anos de ditadura -quando nos santificamos com a aura de "vítimas nobres"- vimos, no governo Sarney, as "vítimas da ditadura" saquearam o Estado , levando-nos à hiperinflação e à vergonha. Depois de Collor, aprendemos que a democracia formal não bastava, que precisávamos democratizar as instituições políticas e jurídicas, sanear as terras onde medram o crime e a ingovernabilidade.
Nós, jornalistas, temos de nos precaver contra as seduções do poder. Mas também devemos tomar cuidado com a sedução de uma "pureza" imaginária que nos absolveria dos erros do país.
Há muitos tipos de picaretas possíveis, além dos que pegam "bola" dos poderosos. Há o picareta do "bem", o picareta "reserva moral", o picareta das certezas "a priori", o picareta "revolucionário tardio", o picareta "isento e objetivo". A grande lição desses anos, para os jornalistas e todos os cidadãos, deveria ser a autocrítica como peça essencial na análise da vida brasileira, com nossa inclusão nos erros nacionais.
O Brasil é um grande erro coletivo, do qual somos cúmplices. Talvez seja essa a lição do livro de Mario Sergio Conti, que ainda não li.


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