São Paulo, sexta-feira, 30 de novembro de 2001

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DOCUMENTÁRIO

Sílvio Tendler relata trajetória do comunista morto em 69 e revê imagem do "inimigo nš 1" do Estado

Filme celebra 90 anos de Marighella

Divulgação
Imagem de Marighella, que se definia como "mulato baiano"


RICARDO KOTSCHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ao final da singela "avant-première" de "Marighella - Retrato Falado do Guerrilheiro", na manhã de anteontem num escritório de Pinheiros, em São Paulo, a meia dúzia de convidados levou algum tempo para se manifestar.
Clara Charf, 76, "com muito orgulho", viúva do líder comunista Carlos Marighella, quebrou o emocionado silêncio para dar um abraço sem palavras em Sílvio Tendler, 51, diretor do vídeo-documentário de 55 minutos, que será levado ao ar amanhã à noite pela TV Cultura, a partir das 21h.
"Descobri o Marighella fazendo este filme", comemorou o diretor, ao receber os abraços. "Confesso que, como menino de classe média, tinha uma imagem pouco simpática do Marighella. Acho que tinha mesmo era um pouco de medo dele".
Era exatamente este o objetivo de Clara Charf ao procurar Tendler, há dois anos, para filmar a vida e a obra de Marighella, que completaria 90 anos na próxima quarta-feira, dia 5: mostrar o chamado "outro lado" do personagem apontado pelos militares durante a ditadura de 64 como o perigoso inimigo público nš 1.
Com recursos próprios e uma ajuda de R$ 40 mil cedida pela TV Cultura, Sílvio Tendler foi à luta. O premiado diretor de "Os Anos JK", "Jango", "Josué de Castro" e "Castro Alves" resolveu incluir o filme sobre Marighella na sua "trilogia libertária" (o filme sobre Glauber Rocha está pronto e, em março, ele conclui o documentário sobre Milton Santos, o geógrafo morto recentemente).
"Hoje, eu o entendo e passei a admirá-lo profundamente", diz Tendler. "O filme mostra o que foi Marighella: um patriota nos sentimentos e um libertário na ação."
Entre parentes, amigos de juventude e companheiros de luta, mais de 40 depoimentos foram gravados. O ponto de partida foi o material de pesquisa reunido pelo jornalista e escritor Vladimir Sachetta, que há anos vem se dedicando, junto com um grupo de amigos, "a resgatar a figura de Marighella".
"Quem anima todos nós é a Clara. Queremos desconstruir o Carlos Marighella da história oficial da ditadura e reconstruir o patriota", explica Sachetta.

Mulato baiano
Depois de dar uma definição de guerrilheiro tirada de um manual do próprio Marighella, o filme começa bem manso. São lembranças de infância e de escola, que mostram um líder comunista desde cedo rebelde, fora dos padrões sisudos dos velhos dirigentes, a ponto de convidar o pessoal do comitê central a pular o Carnaval.
Tereza, a irmã, fala de travessuras inconsequentes; o companheiro Carlos Eugênio Paz arranca risos da pequena platéia ao lembrar de uma peruca que Marighella usava como disfarce, mas era tão ridícula que chamava mais ainda a atenção sobre ele; Ana Montenegro repete a pergunta que lhe fez - "Quem é você?" - e a resposta que recebeu: "Sou apenas um mulato baiano".
Em ritmo forte de telejornal das oito da noite, fatos e imagens vão se sucedendo: protestos em forma de versos no curso de engenharia não concluído, o serviço militar, a entrada no PC em 1932, a mãe negra e o pai operário italiano, a primeira prisão em maio de 1936, quando foi torturado durante 23 dias seguidos.
Definido por Apolonio de Carvalho num depoimento de muitos sorrisos como um "sedutor da militância", Marighella aparece, em seguida, como deputado constituinte, em 1946, anistiado no ano anterior, depois de passar mais de sete anos preso no Estado Novo.
Em 1948, cassado junto com toda a bancada comunista de 16 deputados federais, Marighella volta à clandestinidade -da qual só sairia por breves intervalos, como no governo de JK- até a morte, em 1969.
Com locução do ator Othon Bastos, trilha musical de Eduardo Caminietzki e voz de Itamara Khoorax, o filme vai num crescendo à medida em que as passagens da época da luta armada são marcadas por frases pichadas em muros.
O filme discute exaustivamente a opção pela luta armada feita por Marighella e seus companheiros da Aliança Libertadora Nacional, levando Sílvio Tendler a concluir: "Ao contrário da versão oficial, a luta armada foi consequência e não causa das torturas e de todo o sistema de repressão".
Os momentos mais dramáticos ficam para o final, com os depoimentos dos frades dominicanos presos e torturados para levar os agentes da repressão até Marighella, fuzilado numa emboscada na alameda Casa Branca, nos Jardins, num dia 4 de novembro, há 32 anos.


MARIGHELLA - RETRATO FALADO DO GUERRILHEIRO - Documentário de Sílvio Tendler sobre o líder comunista Carlos Marighella. Brasil, 2001. Onde: TV Cultura, programa Doc.Brasil. Quando: amanhã, às 21h.


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