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FERNANDO BONASSI
De como vivem os arquivos mortos
Os arquivos mortos devem ou
não devem ser remexidos
enquanto fenecem no conforto estonteante dos fundos das estantes
enferrujadas?
Tudo indica que os arquivos
mortos são como esses tigres de
papel que amarelaram, que fizeram papelão da aventura da história e que, embora pareçam ter
perdido os dentes e as garras, ainda podem fazer farra com seu potencial selvagem adormecido. Algumas reputações poderão ser
farta e fatalmente atingidas por
esses cadáveres esquisitos, que
num passado incômodo povoaram vielas, becos e favelas com dizeres ideológicos cifrados em seus
corpos e copos crivados de balas
justiceiras. Os arquivos mortos
com essas nojeiras podem incomodar até os mais justos, que tinham por certo que tudo isso estava liqüidado ou transitado em
julgado. Os juízos nem sempre estiveram em cima dos pescoços;
quer porque foram decepados,
quer porque se encontravam num
coldre acolchoado. Politicamente,
a aridez de um arquivo morto pode até fertilizar o húmus de algumas mentes, mostrando-lhes, por
exemplo, que certos doentes, por
mais errados que estivessem, ainda não se encontravam curados
quando foram entocados em sepulturas indigentes. Os arquivos
mortos estão mortos, mas podem
ser necrológios muito transparentes em seus relatórios quanto ao
estado fisiológico dos pacientes
abatidos. Os pacientes foram perdidos, mas seus prontuários podem estar bem metidos nesses arquivos de pareceres fedidos. Há
mesmo arquivos mortos malcheirosos, que ficam exalando por
baixo das lajes, dos armários, dos
tapetes e topetes. Há os que asseguram serem os arquivos mortos
aqueles documentos da transição
da podridão desse presente histórico para a glorificação inocente
do passado histriônico, faraônico
ou simplesmente inventado. Coerentemente, está prática e patrioticamente provado: os arquivos
mortos, descansando em paz, podem valer mais desse jeito para
certos vivos e espertos amedrontados de aparecerem malvados,
preferindo perecer no distanciamento dos laudos. Estes permanecem em "eterno cuidado e atenção" ou, se preferirem, na tensão
da escravidão permanente da
preocupação. Porque há arquivos
mortos que foram interrogados e
desapareceram misteriosamente.
Há certamente os que traíram a
causa que abraçaram e até a calça que vestiram. Há os que suaram a camisa e morreram na certeza de terem melhorado a natureza humana.
Há homens mortos nesses arquivos!
Há os arquivos mortos assassinados a sangue frio no calor do
combate e os que não agüentaram esperar a sua hora, matando-se enquanto eram forjados,
ferrados ou eletrocutados em sessões de tortura, palmatória e
maus-tratos. Os arquivos mortos
poderão ser severos para aqueles
que se impressionam com pouco.
Há arquivos muito mortos, todos tortos, descarnados e feridos
demais, horríveis de ver a olho
nu. Nas fotos pornográficas desse
voyeurismo, exibe-se freqüente e
curiosamente a humilhação do
nudismo involuntário. Era impositivo, era obrigatório, era masturbatório... a maior vergonha é
que alguns de nós tenhamos esses
prazeres.
Arquivos mortos são técnicos,
são estéticos, são plásticos; também são totens metálicos, objetos
de escuros cultos dos alquimistas
escusos. Há inúmeras questões
pendentes nesses arquivos precocemente isolados nos porões das
repartições. Há questões de guerra, de herança, de família. Mulheres e maridos, ignorantes e doutores, legalistas e torturadores,
guerrilheiros e agitadores, pais e
filhos... pois há os arquivos mortos que são procurados pelos jovens inocentes e os que são vigiados pelos velhos culpados. Todos
têm calafrios nas costas quentes,
especialmente aqueles que ao longo dessa trajetória incoerente as
sentiram esfriando, arqueando e
perdendo seu poder de entreter os
eleitores. Democracia tem seus
valores. Num dia se está por cima;
no outro, do outro lado, sendo
mais que necessário explicar de
verdade essa confusão. Faz parte
da novidade do espetáculo da reprodução: há arquivos que são filmados como em Hollywood e os
que são microfilmados por arapongas assustados. São protagonistas de terror barato, papagaios
pesados pendurados no cartório
da consciência. A influência dos
cartórios é hereditária nessas terras, mas de geração em geração
tal "conflito agrário" pode até
mudar de mão, corroendo a ilusão dos criadores distraídos em
suas fazendas blindadas. Há arquivos mortos que são mesmo difíceis de bater, há os que deitaram, mas esqueceram de morrer e
os que não puderam ser enterrados... por falta de tempo, de mãos
limpas para o trabalho sujo ou
porque alguns viram múmias enquanto outros viram estátuas.
Arquivos mortos provocam mágoas e censuras. Ainda assim, os
arquivos mortos podem se levantar de sua zona esdrúxula a qualquer momento, mostrando os pedestais ocos dos santos de barro.
Porque há arquivos com alardes,
com alarmes, com barreiras civis
e militares. Os conservadores diligentes não conterão para sempre
os ignorantes com o silêncio da
desinformação; ainda mais
quando os primeiros dependem
dos salários que os últimos lhes
pagam. O aumento da violência
de quem é que está sendo controlado com a proteção do "esquecimento"? Os arquivos mortos metem medo na turba? Serão todos
confiáveis quando abrirmos a
tampa dessa tumba? Nada disso é
intransponível em sociedades viáveis. Já quanto às razões para isso
aqui encontráveis...
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