São Paulo, terça-feira, 30 de novembro de 2004

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FERNANDO BONASSI

De como vivem os arquivos mortos

Os arquivos mortos devem ou não devem ser remexidos enquanto fenecem no conforto estonteante dos fundos das estantes enferrujadas?
Tudo indica que os arquivos mortos são como esses tigres de papel que amarelaram, que fizeram papelão da aventura da história e que, embora pareçam ter perdido os dentes e as garras, ainda podem fazer farra com seu potencial selvagem adormecido. Algumas reputações poderão ser farta e fatalmente atingidas por esses cadáveres esquisitos, que num passado incômodo povoaram vielas, becos e favelas com dizeres ideológicos cifrados em seus corpos e copos crivados de balas justiceiras. Os arquivos mortos com essas nojeiras podem incomodar até os mais justos, que tinham por certo que tudo isso estava liqüidado ou transitado em julgado. Os juízos nem sempre estiveram em cima dos pescoços; quer porque foram decepados, quer porque se encontravam num coldre acolchoado. Politicamente, a aridez de um arquivo morto pode até fertilizar o húmus de algumas mentes, mostrando-lhes, por exemplo, que certos doentes, por mais errados que estivessem, ainda não se encontravam curados quando foram entocados em sepulturas indigentes. Os arquivos mortos estão mortos, mas podem ser necrológios muito transparentes em seus relatórios quanto ao estado fisiológico dos pacientes abatidos. Os pacientes foram perdidos, mas seus prontuários podem estar bem metidos nesses arquivos de pareceres fedidos. Há mesmo arquivos mortos malcheirosos, que ficam exalando por baixo das lajes, dos armários, dos tapetes e topetes. Há os que asseguram serem os arquivos mortos aqueles documentos da transição da podridão desse presente histórico para a glorificação inocente do passado histriônico, faraônico ou simplesmente inventado. Coerentemente, está prática e patrioticamente provado: os arquivos mortos, descansando em paz, podem valer mais desse jeito para certos vivos e espertos amedrontados de aparecerem malvados, preferindo perecer no distanciamento dos laudos. Estes permanecem em "eterno cuidado e atenção" ou, se preferirem, na tensão da escravidão permanente da preocupação. Porque há arquivos mortos que foram interrogados e desapareceram misteriosamente. Há certamente os que traíram a causa que abraçaram e até a calça que vestiram. Há os que suaram a camisa e morreram na certeza de terem melhorado a natureza humana.
Há homens mortos nesses arquivos!
Há os arquivos mortos assassinados a sangue frio no calor do combate e os que não agüentaram esperar a sua hora, matando-se enquanto eram forjados, ferrados ou eletrocutados em sessões de tortura, palmatória e maus-tratos. Os arquivos mortos poderão ser severos para aqueles que se impressionam com pouco.
Há arquivos muito mortos, todos tortos, descarnados e feridos demais, horríveis de ver a olho nu. Nas fotos pornográficas desse voyeurismo, exibe-se freqüente e curiosamente a humilhação do nudismo involuntário. Era impositivo, era obrigatório, era masturbatório... a maior vergonha é que alguns de nós tenhamos esses prazeres.
Arquivos mortos são técnicos, são estéticos, são plásticos; também são totens metálicos, objetos de escuros cultos dos alquimistas escusos. Há inúmeras questões pendentes nesses arquivos precocemente isolados nos porões das repartições. Há questões de guerra, de herança, de família. Mulheres e maridos, ignorantes e doutores, legalistas e torturadores, guerrilheiros e agitadores, pais e filhos... pois há os arquivos mortos que são procurados pelos jovens inocentes e os que são vigiados pelos velhos culpados. Todos têm calafrios nas costas quentes, especialmente aqueles que ao longo dessa trajetória incoerente as sentiram esfriando, arqueando e perdendo seu poder de entreter os eleitores. Democracia tem seus valores. Num dia se está por cima; no outro, do outro lado, sendo mais que necessário explicar de verdade essa confusão. Faz parte da novidade do espetáculo da reprodução: há arquivos que são filmados como em Hollywood e os que são microfilmados por arapongas assustados. São protagonistas de terror barato, papagaios pesados pendurados no cartório da consciência. A influência dos cartórios é hereditária nessas terras, mas de geração em geração tal "conflito agrário" pode até mudar de mão, corroendo a ilusão dos criadores distraídos em suas fazendas blindadas. Há arquivos mortos que são mesmo difíceis de bater, há os que deitaram, mas esqueceram de morrer e os que não puderam ser enterrados... por falta de tempo, de mãos limpas para o trabalho sujo ou porque alguns viram múmias enquanto outros viram estátuas. Arquivos mortos provocam mágoas e censuras. Ainda assim, os arquivos mortos podem se levantar de sua zona esdrúxula a qualquer momento, mostrando os pedestais ocos dos santos de barro. Porque há arquivos com alardes, com alarmes, com barreiras civis e militares. Os conservadores diligentes não conterão para sempre os ignorantes com o silêncio da desinformação; ainda mais quando os primeiros dependem dos salários que os últimos lhes pagam. O aumento da violência de quem é que está sendo controlado com a proteção do "esquecimento"? Os arquivos mortos metem medo na turba? Serão todos confiáveis quando abrirmos a tampa dessa tumba? Nada disso é intransponível em sociedades viáveis. Já quanto às razões para isso aqui encontráveis...


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