São Paulo, sexta-feira, 30 de novembro de 2007

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Crítica/"A Vida dos Outros"

Sociedade do espetáculo dá atualidade a filme

DO CRÍTICO DA FOLHA

Fazer uso de uma história verdadeira (biográfica ou de época) como tema de uma ficção é uma fórmula garantida para produzir aquele típico filme ganhador de Oscar: correto e enfadonho.
O esquema foi usado pelo alemão Florian Henckel von Donnersmarck em "A Vida dos Outros" e saiu da última cerimônia de entrega do Oscar com o seu (de estrangeiro) nas mãos. Mas o filme alcança um resultado muito mais interessante do que os que receberam a premiação nos últimos anos.
Autor também do roteiro, Von Donnersmarck realizou um profundo trabalho de pesquisa para reconstituir os últimos anos de atuação da Stasi, a polícia política do regime comunista da antiga Alemanha Oriental. Esse tipo de investimento (em verossimilhança, em direção de arte) rende uma inequívoca qualidade de acabamento a "A Vida...". A vantagem é que o diretor não se contenta em fazer só um filme de qualidade. E nem se perde em denunciar os abusos de uma época e de um regime, como se fosse um aluno de Costa-Gavras.

Conceito
Há um conceito de espetáculo que sustenta tanto a trama quanto a encenação de "A Vida..." e é ela que torna o filme atraente e contemporâneo.
A trama tem como centro um casal, um dramaturgo e uma atriz. Ela atrai a cobiça de um ministro, que lança contra ele o arsenal de arapongas do Estado com o objetivo de detectar alguma atividade contra-revolucionária e eliminar o concorrente. Sua paixão é despertada enquanto é um espectador na platéia e ela atua no palco.
Como pivô da armadilha, encontra-se o capitão Wiesler, exímio espião, que monta um aparato de escuta no sótão do prédio onde o casal habita, registrando seu cotidiano, diálogos, brigas e embates amorosos. Enquanto o casal vive o drama, Wiesler é apenas o espectador solitário desta cena.
Já a encenação recorre com maestria ao princípio clássico dos dois espaços, paralelos e complementares, nos desdobramentos do drama. E onde quer que estejam, seus personagens seguem à risca a distribuição de papéis entre palco e platéia, entre observados e observadores. O diretor domina plenamente os mecanismos do thriller elegante, com óbvia inspiração em Hitchcock.
O conceito de espetáculo aproxima-o de "Adeus, Lênin", outro filme alemão de grande sucesso recente e que também investia no uso da história. Em ambos, situados antes e depois da queda do Muro de Berlim, a lei da sobrevivência exige um esforço de encenação.
A Berlim comunista era cenário construído para manter viva a mãe em "Adeus, Lênin". Em "A Vida...", para não ser tragado pela lógica totalitária, é preciso adotar os procedimentos da ficção (fingir, enganar). Em ambos, a idéia do artifício é devolvida para o núcleo da vida pública e de sua necessidade do espetáculo. E ambos são filmes que retratam outra época, mas que falam mais diretamente a esta na qual vivemos. (CSC)


A VIDA DOS OUTROS
Direção:
Florian Henckel von Donnersmarck
Produção: Alemanha, 2006
Com: Martina Gedeck, Ulrich Mühe
Onde: a partir de hoje nos cines Unibanco Arteplex, iG e circuito
Avaliação: ótimo


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