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São Paulo, terça-feira, 30 de dezembro de 2003

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Documentos revelam queima de livros pelo Deops

E o fogo levou...

João Wainer/Folha Imagem
Sala no Arquivo do Estado onde ficam prontuários do Deops


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma série de documentos encontrados há menos de 15 dias esclarece pela primeira vez o que é que a polícia política brasileira fazia com as milhares de toneladas de livros e outros objetos "subversivos" que apreendia nas primeiras décadas do século 20.
Os papéis foram encontrados por acaso, em uma das 160 mil caixas com documentos do Deops (Departamento de Ordem Política e Social, órgão ativo de 1924 a 1983), hoje guardadas no Arquivo do Estado, em São Paulo.
Karin Sant'Anna Kössling, uma das pesquisadoras da equipe da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, xeretava prontuários aleatórios, em busca de material sobre a perseguição política de militantes de movimentos negros quando topou com uma pasta com a inscrição "Levantamento de material existente no depósito de material apreendido".
Dentro do envelope de cartolinas pardas, de número 131.867, estava a "jóia" historiográfica. Uma papelada de mais de 50 folhas descrevia como os chefões do Deops no final dos anos 40 sugeriam "como medida profilática a industrialização ou incineração dos livros", que foram levadas a cabo pelo menos até 1957.
"Foi a primeira vez que encontramos documentos que mostram o que acontecia com os materiais apreendidos. Já imaginávamos que os livros eram incinerados, mas não tínhamos nenhum indício concreto de como isso era feito", diz à Folha a professora Tucci Carneiro.
Desde 1996 ela vem virando de ponta-cabeça os arquivos do Deops, e é dela o trabalho mais importante sobre a perseguição oficial das idéias no Brasil da primeira metade do século 20.
O ensaio "Livros Proibidos, Idéias Malditas", reeditado no ano passado pela Ateliê Editorial, descreve com minúcias quais livros eram tidos como perigosos (ela encontrou, por exemplo, a ordem de "destruição de todos os exemplares" da adaptação de "Peter Pan" por Monteiro Lobato, de 1938). A descoberta de agora serve de epílogo, algo no estilo "como mandar toneladas de livros para a terra do nunca".
A pasta 131.867 mostra que eram mesmo as fogueiras o destino de boa parte dos milhares de volumes. Eles eram tostados no Serviço Incinerador da Prefeitura Municipal de São Paulo, que, ironias historiográficas, ficava na rua do Sumidouro.
Um "Auto de Incineração" de 26 de junho de 1957 atesta que foi este o destino de 4.240 quilos, para lá carregados pelo caminhão chapa 19-99-22.
Outro documento, um "Auto de Entrega de Material para Industrialização", testemunha como nesse mesmo mês caminhões levaram 11 toneladas de "impressos, livros, jornais" para serem "industrializados" para a empresa de papel São Roberto, na Vila Maria. Antes que saíssem para essas viagens, esses milhares de quilos descansaram por anos e anos na seção de bagagens da estação da Estrada de Ferro Sorocabana (hoje parte do Complexo Cultural Júlio Prestes).
Ali não ficavam estocados apenas livros, folhetos e outros materiais "intelectuais". Conviviam com outras tantas toneladas de objetos variados, inclusive móveis e roupas, boa parte deles "apreendidos entre os anos de 1939 a 1945 e pertencentes a súditos do "eixo'", como registra carta de 1947.
Um "levantamento do material existente no depósito" registrava, de fato, volume colossal de objetos de imigrantes italianos, japoneses e alemães (podiam ser malas, fotografias, ou "42 listas telefônicas velhas").
A lista de livros a serem destruídos, descoberta no mesmo prontuário, também é dominada por livros dessas nacionalidades e pelos clássicos livros "vermelhos".
O depósito do Deops tinha às tantas 1.801 exemplares de "ABC dos Comunistas", de Bukarin, que faziam deste o "best-seller" dos censores, 350 tomos de "Marxismo e o Problema Nacional e Colonial", de Stálin, e 275 "Contra a Guerra e o Imperialismo", de Luis Carlos Prestes.
Entre os volumes mais literários estavam "Terras do Sem Fim", de Jorge Amado (de quem se queimou ainda "O Cavaleiro da Esperança"), "Caetés", de Graciliano Ramos, "O Espião", do russo Máximo Górki, ou o romance "Terra Vermelha", de Francisco Ayres (não há dúvida de que graças ao tom "suspeito" da terra).
Se essas obras ficaram, independente do fogo, uma fatia generosa do material transformado em cinzas e papéis picados não deixou similares. "Esse imenso conjunto possibilitaria que se reescrevesse boa parte da história política brasileira, da história da imigração, de tantas outras histórias", lamenta Tucci Carneiro.


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