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CONTARDO CALLIGARIS
Afeto e família
Um pouco antes do Natal, o
presidente Lula anunciou a
campanha que o governo planeja
para o ano que vem.
Em 2004, foi promovida a idéia
de que "O Melhor do Brasil É o
Brasileiro", o qual não desiste
nunca.
A campanha de 2005 se propõe
a corrigir a "falta de afeto" e a
"desagregação da estrutura familiar".
Difícil desaprovar, não é? Quem
ousaria sugerir que a gente seja
mais frio, distante ou cínico, em
suma, menos "afetivo"? Ou que
criemos nossos filhos sem lar,
num mundo celibatário desprovido de pernis e árvores de Natal?
Mas não deixa de ser curioso
que logo um governo brasileiro
proponha uma campanha em favor de afeto e família. Estamos
quase no septuagésimo aniversário de "Raízes do Brasil". Nesse livro seminal da sociologia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda
mostra como, no Brasil, afeto e família prevaleceram sobre espírito
cívico e sentimento de cidadania.
Conseqüência: uma tradição política clientelar e paternalista, dominada pelo princípio "para os
amigos e os parentes, tudo; para
os outros, inimigos e estranhos, o
rigor da lei". Com efeito, família e
afeto são os valores centrais de
qualquer gestão mafiosa do poder
(releia ou reveja "O Poderoso
Chefão").
Como fica, então? No Brasil, família e afeto fazem falta ou abundam e transbordam, invadindo o
campo da vida pública?
Cuidado, não sou contra a família nem contra os afetos. Mas
prefiro desconfiar das ideologias,
sobretudo quando são objetos de
campanhas.
As ideologias, promovidas de
maneira abstrata, estabelecem
parentescos desagradáveis. Por
exemplo, a idéia de que afeto e família nos ajudariam a combater
o cinismo do mercado é simpática, mas a mesma idéia poderia
ter sido a bandeira do ruralismo
moralizador e assassino que, em
1975, levou Pol Pot a exterminar
os cidadãos de Phnom Penh. Ou
que animou a cólera de Deus
(não foi seu melhor momento) na
hora de destruir Sodoma e Gomorra.
É mais prudente (um resto de
marxismo não dói) considerar
que as ideologias são concretas:
seu valor não é absoluto (tipo: "a
família é um bem em si"), mas varia segundo a conjuntura política.
Ora, acontece que, hoje, o mundo
ocidental vive uma época de revalorização dos afetos do lar. É possível subir nesse bonde, mas é útil
lembrar-se de que, a essa altura,
ele já carrega outros passageiros:
Tradição-Família-Propriedade
ocupa um assento no fundo e,
bem na frente, estão sentados
George Bush e seus fundamentalistas evangélicos.
No meu campo de trabalho
constato o seguinte: nos anos 60 e
70, a psiquiatria, a psicologia e,
em geral, a cultura criticavam a
família como berço da loucura.
Em 68, o primeiro filme de Ken
Loach, "Family Life", foi um verdadeiro ato de acusação contra a
família. Em 1970, Laing e Esterson publicaram "Sanity, Madness
and the Family" (saúde mental,
loucura e a família). A família era
a grande responsável pela repetição dolorosa do mesmo e da mesmice, uma jaula em que se debatiam os anseios e os desejos de
mudança, em particular os dos
jovens.
Durante os anos 70, historiadores e sociólogos, inspirados no ensino de Michel Foucault, descreveram a família como um refinado instrumento de domínio: o
"sistema" se reproduzia delegando a tarefa de subjugar os corpos e
as almas à família, única instituição capaz de controlar a vida cotidiana ("La Politique des Familles", de Jacques Donzelot, é de
77).
Naquelas décadas, na saúde
mental, vivia-se uma contradição
aguda: tratava-se de fechar os asilos e, portanto, era necessário devolver os pacientes aos cuidados
de suas famílias. Mas as famílias
apareciam como o caldo em que
se originava o sofrimento dos pacientes. O que fazer?
Hoje, a cena mudou. Na bibliografia recente, há muito pouco sobre a família como produtora de
loucura. Em compensação, abundam os manuais para que a família, valorizada e devidamente instruída, possa se tornar a terapeuta de seus membros doentes.
Estávamos certos em 1970? Ou
estamos certos agora? Um pouco
dos dois.
A família é um sistema de controle e repressão. Como mostrou
Freud, em regra, educamos nossos filhos como nossos avós teriam
gostado de educar nossos pais:
haja conservadorismo. Além disso, a família é um emaranhado
de amores, ódios e invejas capazes
de enlouquecer a muitos. Mas a
família é também um amparo
sem o qual seríamos indivíduos
perfeitamente isolados, conformes ao figurino de nossa cultura,
mas desesperados e provavelmente incapazes de viver em sociedade.
Então, família sim? Ou família
não? Alternativa furada. Aliás, as
palavras de ordem extremas e jacobinas seriam sempre ridículas,
se não fossem perigosas. É o caso
de "Morte à família!", que, nos
anos 70, presidia à miséria de experiências comunitárias em que
os filhos eram criados coletivamente, sem que fosse reconhecida
sua ascendência paterna. E é
também o caso do apelo à família
como se fosse a única fonte de valores, apelo que anima os ideólogos da direita americana e agora,
aparentemente, os da esquerda
brasileira.
Moral da história: não discordo
da campanha anunciada, mas
gostaria que, na hora de pegar
um bonde andando, a gente fosse
menos ingênuo.
ccalligari@uol.com.br
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