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Mario Reis mudou o canto brasileiro
Intérprete, cujo centenário é celebrado amanhã, criou novo estilo e influenciou gerações com a bossa que incorporou às canções
Envolto em certa mística devido à vida pessoal, cantor de sucessos como "Jura" é tido por alguns como precursor de João Gilberto
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Chico Buarque abria seu último show, "Carioca", com "Voltei a Cantar", que Lamartine
Babo compôs em 1939 para
marcar o primeiro dos cinco retornos de Mario Reis à música
profissional. Às vésperas de seu
centenário, que se completa
amanhã, falta a volta definitiva
de Reis ao lugar de um dos
maiores intérpretes e inventores da música brasileira.
Um de seus admiradores é
Chico, que fez para ele "Bolsa
de Amores" (1971) -proibida
pela censura por, supostamente, ofender a mulher nacional:
"A moça é fria/ É ordinária/ Ao
portador". Mas a influência de
Reis vai muito além de um caso
aqui, outro acolá.
"A história de que ele cantava
como se fala é menos importante. Com o surgimento das
gravações elétricas, surgiram
Marios Reis em todos os países.
O que o diferenciava é que ele
cantava com bossa. Ele incorporou a bossa ao canto popular
e, desde então, qualquer um
que interprete música brasileira está, mesmo sem saber, seguindo Mario", avalia o jornalista e pesquisador Ruy Castro.
Mario da Silva Meirelles
Reis, filho da elite carioca (criado com os lucros da Fábrica
Bangu de Tecidos, formou-se
em direito, sendo chamado de
"bacharel do samba"), surgiu
para a música profissional em
1928, um ano depois de os microfones começarem a ser usados por aqui. Como Luís Antônio Giron ressalta em "Mario
Reis - O Fino do Samba" (2001),
ele tinha voz extensa, mas logo
notou que não precisava gritar
para transmitir a letra. O "x" da
questão era o estilo, a bossa.
"Mario e Carmen [Miranda]
são os dois inventores do canto
brasileiro. Como Mario começou em 28, e Carmen, em 30, a
primazia pode ficar com Mario,
mas, nos primeiros sucessos,
como "Jura" e "Gosto que me
Enrosco", ele ainda está inseguro, próximo dos cantores anteriores, como Bahiano. Ainda
não é o que seria a partir dos
duos com Francisco Alves,
quando, até por contraponto,
impôs seu charme. Já Carmen
era, desde o começo, Carmen
Miranda", afirma Ruy Castro.
Revolucionário
A opinião do biógrafo da pequena notável é polêmica, já
que o Mario dos anos 20, a
quem Sinhô deu alguns de seus
melhores sambas, é tido como
um intérprete pronto, revolucionário. "Imagine alguém daquela época ouvindo as primeiras gravações do Mario, uma
antivoz. A pessoa sairia correndo. Era transformador. O sistema do Mario se espalhou para
muito além dele", opina o cineasta Julio Bressane, amigo
do cantor em seus últimos 15
anos e que o homenageou no
filme "O Mandarim" (1995).
Paulinho da Viola está entre
os artistas não influenciados
diretamente por Reis, mas
consciente de ser devedor do
primeiro intérprete de "Filosofia" -samba de Noel Rosa que
Paulinho viria a gravar, assim
como Chico. "Eu ouvia Orlando
[Silva], Sílvio [Caldas], Cyro
[Monteiro], Moreira [da Silva],
mas percebia que Mario soava
diferente. Era aquela voz sem
vibrato, transmitia algo delicado e, ao mesmo tempo, forte.
Há influências que não são diretas, mas certamente estão na
gente", reconhece Paulinho.
Para a voz grave e teatral de
Maria Bethânia é que Mario
Reis não seria referência mesmo. Mas ela se lembra de ouvi-lo no rádio de casa, em Santo
Amaro da Purificação (BA).
"Minha mãe sempre foi apaixonada por ele, e eu o tenho dentro do ouvido. É uma das raízes
de João Gilberto, sem dúvida."
Bethânia toca num ponto polêmico, para o qual seu irmão
Caetano Veloso e João Gilberto
não dão muita ênfase. Para eles,
a tal linha evolutiva do canto
brasileiro passa de Orlando Silva -mais do que de Reis- para
o estilo de Gilberto, apesar da
voz pequena, sem vibrato, e de
divisões peculiares.
"No sentido da voz com bossa, ele pode ser um dos precursores de João, sim.
Mas João também
tinha a vertente
romântica, do Orlando, assim como
Cyro tinha. E ninguém canta com
mais bossa do que
Cyro. Essa divisão
é esquemática, as
vertentes podem
se conciliar", acredita Ruy Castro.
"Não ouço semelhanças entre o
Mario e o João Gilberto. Em João, a
voz e o violão, as
harmonias, os ritmos, as divisões
que se cruzam, tudo é mais complexo. Mario é um
inovador. João, um inventor",
diz o escritor Nelson Motta,
que apresentou Reis a Chico.
Motta tem uma história curiosa: fez com Marcos Valle um
jingle para uma marca de feijão,
e o cliente queria um cantor remetendo aos anos 30. Sem coragem para convidar
Mario, o letrista acabou gravando ele próprio a música, imitando o original.
Situação similar viveu Bressane ao descartar um ator que
representasse um
clone do cantor em
"O Mandarim" -a
função de Fernando
Eiras é, digamos,
mais poética, sendo
acompanhado no
elenco por Chico,
Caetano, Bethânia,
Paulinho, Gilberto
Gil, Gal Costa e Edu
Lobo, a título de homenagem ao mestre.
"Não havia como reproduzir Mario, seria
ridículo. Ele era um homem
único, um artista integral, que
vivia em pânico criativo. A arte
era sua vida, e segurava sua patologia", diz Bressane.
Autocrítica
Mario Reis não era um homem com quem fosse fácil conviver. Tinha princípios muito
arraigados e, por isso, largou a
carreira enquanto fazia sucesso, em 1936, aos 29 anos.
Fez breves voltas em 39, 51,
60, 65 e 71. Inovava um pouco,
mas o repertório era, em geral,
o mesmo: Sinhô, Noel, Lamartine, Ismael, Bide/Marçal. Segundo Bressane e outros, era
muito autocrítico. "Esse pegar
e abandonar as coisas era uma
característica da psicologia dele, uma forma de ser crítico.
Mas nunca se afastou totalmente da música. Preservava a
imagem de artista. Queria ter a
dignidade da morte de um César. Tinha horror à velhice, pudor do próprio corpo", diz o cineasta, para quem Reis vivia
entre a razão e a loucura.
Esse jeito de ser contribuiu
em muito para uma mística em
torno de Mario. Jovem rico que
aprendia samba entre os compositores pobres do bairro do
Estácio de Sá, tornou-se cada
vez menos sociável, freqüentando apenas lugares de elite: o
Country Club, a sede social do
Jockey Club e o Copacabana
Palace, onde morou na suíte
140 de 1957 até morrer, em
1981. O dinheiro tinha acabado
havia muito tempo, mas a elegância permanecia, um pouco
como aconteceria mais tarde
com seu amigo Jorge Guinle.
Para aumentar a mística,
possivelmente morreu casto.
Não por ser gay, mas pelo excesso de pudor e, segundo Bressane, por uma fimose nunca resolvida. Giron acredita que ele
tenha tido namoradas -Carmen Miranda não foi uma delas, diz Ruy Castro. "Ela gostava
de homem alto, forte, bonito e
burro. E não namorava colegas.
O que ela e Mario tiveram foi
uma amizade, além de fazerem
ótimas gravações juntos", diz.
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