São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mario Reis mudou o canto brasileiro

Intérprete, cujo centenário é celebrado amanhã, criou novo estilo e influenciou gerações com a bossa que incorporou às canções

Envolto em certa mística devido à vida pessoal, cantor de sucessos como "Jura" é tido por alguns como precursor de João Gilberto

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Chico Buarque abria seu último show, "Carioca", com "Voltei a Cantar", que Lamartine Babo compôs em 1939 para marcar o primeiro dos cinco retornos de Mario Reis à música profissional. Às vésperas de seu centenário, que se completa amanhã, falta a volta definitiva de Reis ao lugar de um dos maiores intérpretes e inventores da música brasileira.
Um de seus admiradores é Chico, que fez para ele "Bolsa de Amores" (1971) -proibida pela censura por, supostamente, ofender a mulher nacional: "A moça é fria/ É ordinária/ Ao portador". Mas a influência de Reis vai muito além de um caso aqui, outro acolá.
"A história de que ele cantava como se fala é menos importante. Com o surgimento das gravações elétricas, surgiram Marios Reis em todos os países. O que o diferenciava é que ele cantava com bossa. Ele incorporou a bossa ao canto popular e, desde então, qualquer um que interprete música brasileira está, mesmo sem saber, seguindo Mario", avalia o jornalista e pesquisador Ruy Castro.
Mario da Silva Meirelles Reis, filho da elite carioca (criado com os lucros da Fábrica Bangu de Tecidos, formou-se em direito, sendo chamado de "bacharel do samba"), surgiu para a música profissional em 1928, um ano depois de os microfones começarem a ser usados por aqui. Como Luís Antônio Giron ressalta em "Mario Reis - O Fino do Samba" (2001), ele tinha voz extensa, mas logo notou que não precisava gritar para transmitir a letra. O "x" da questão era o estilo, a bossa.
"Mario e Carmen [Miranda] são os dois inventores do canto brasileiro. Como Mario começou em 28, e Carmen, em 30, a primazia pode ficar com Mario, mas, nos primeiros sucessos, como "Jura" e "Gosto que me Enrosco", ele ainda está inseguro, próximo dos cantores anteriores, como Bahiano. Ainda não é o que seria a partir dos duos com Francisco Alves, quando, até por contraponto, impôs seu charme. Já Carmen era, desde o começo, Carmen Miranda", afirma Ruy Castro.

Revolucionário
A opinião do biógrafo da pequena notável é polêmica, já que o Mario dos anos 20, a quem Sinhô deu alguns de seus melhores sambas, é tido como um intérprete pronto, revolucionário. "Imagine alguém daquela época ouvindo as primeiras gravações do Mario, uma antivoz. A pessoa sairia correndo. Era transformador. O sistema do Mario se espalhou para muito além dele", opina o cineasta Julio Bressane, amigo do cantor em seus últimos 15 anos e que o homenageou no filme "O Mandarim" (1995).
Paulinho da Viola está entre os artistas não influenciados diretamente por Reis, mas consciente de ser devedor do primeiro intérprete de "Filosofia" -samba de Noel Rosa que Paulinho viria a gravar, assim como Chico. "Eu ouvia Orlando [Silva], Sílvio [Caldas], Cyro [Monteiro], Moreira [da Silva], mas percebia que Mario soava diferente. Era aquela voz sem vibrato, transmitia algo delicado e, ao mesmo tempo, forte. Há influências que não são diretas, mas certamente estão na gente", reconhece Paulinho.
Para a voz grave e teatral de Maria Bethânia é que Mario Reis não seria referência mesmo. Mas ela se lembra de ouvi-lo no rádio de casa, em Santo Amaro da Purificação (BA). "Minha mãe sempre foi apaixonada por ele, e eu o tenho dentro do ouvido. É uma das raízes de João Gilberto, sem dúvida."
Bethânia toca num ponto polêmico, para o qual seu irmão Caetano Veloso e João Gilberto não dão muita ênfase. Para eles, a tal linha evolutiva do canto brasileiro passa de Orlando Silva -mais do que de Reis- para o estilo de Gilberto, apesar da voz pequena, sem vibrato, e de divisões peculiares.
"No sentido da voz com bossa, ele pode ser um dos precursores de João, sim. Mas João também tinha a vertente romântica, do Orlando, assim como Cyro tinha. E ninguém canta com mais bossa do que Cyro. Essa divisão é esquemática, as vertentes podem se conciliar", acredita Ruy Castro.
"Não ouço semelhanças entre o Mario e o João Gilberto. Em João, a voz e o violão, as harmonias, os ritmos, as divisões que se cruzam, tudo é mais complexo. Mario é um inovador. João, um inventor", diz o escritor Nelson Motta, que apresentou Reis a Chico.
Motta tem uma história curiosa: fez com Marcos Valle um jingle para uma marca de feijão, e o cliente queria um cantor remetendo aos anos 30. Sem coragem para convidar Mario, o letrista acabou gravando ele próprio a música, imitando o original.
Situação similar viveu Bressane ao descartar um ator que representasse um clone do cantor em "O Mandarim" -a função de Fernando Eiras é, digamos, mais poética, sendo acompanhado no elenco por Chico, Caetano, Bethânia, Paulinho, Gilberto Gil, Gal Costa e Edu Lobo, a título de homenagem ao mestre. "Não havia como reproduzir Mario, seria ridículo. Ele era um homem único, um artista integral, que vivia em pânico criativo. A arte era sua vida, e segurava sua patologia", diz Bressane.

Autocrítica
Mario Reis não era um homem com quem fosse fácil conviver. Tinha princípios muito arraigados e, por isso, largou a carreira enquanto fazia sucesso, em 1936, aos 29 anos.
Fez breves voltas em 39, 51, 60, 65 e 71. Inovava um pouco, mas o repertório era, em geral, o mesmo: Sinhô, Noel, Lamartine, Ismael, Bide/Marçal. Segundo Bressane e outros, era muito autocrítico. "Esse pegar e abandonar as coisas era uma característica da psicologia dele, uma forma de ser crítico. Mas nunca se afastou totalmente da música. Preservava a imagem de artista. Queria ter a dignidade da morte de um César. Tinha horror à velhice, pudor do próprio corpo", diz o cineasta, para quem Reis vivia entre a razão e a loucura.
Esse jeito de ser contribuiu em muito para uma mística em torno de Mario. Jovem rico que aprendia samba entre os compositores pobres do bairro do Estácio de Sá, tornou-se cada vez menos sociável, freqüentando apenas lugares de elite: o Country Club, a sede social do Jockey Club e o Copacabana Palace, onde morou na suíte 140 de 1957 até morrer, em 1981. O dinheiro tinha acabado havia muito tempo, mas a elegância permanecia, um pouco como aconteceria mais tarde com seu amigo Jorge Guinle.
Para aumentar a mística, possivelmente morreu casto. Não por ser gay, mas pelo excesso de pudor e, segundo Bressane, por uma fimose nunca resolvida. Giron acredita que ele tenha tido namoradas -Carmen Miranda não foi uma delas, diz Ruy Castro. "Ela gostava de homem alto, forte, bonito e burro. E não namorava colegas. O que ela e Mario tiveram foi uma amizade, além de fazerem ótimas gravações juntos", diz.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Carlos Navas celebrou cantor em disco recente
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.