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São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Uma rainha da Inglaterra com dois primeiros-ministros

Quem observar isentamente, sem partidarismo e sem interesse imediato no jogo político, os primeiros movimentos do novo governo, que hoje completa o primeiro mês de efetivo exercício, chegará talvez à mesma conclusão a que cheguei.
Por deliberação própria, por acordo com seus partidários ou mesmo por absoluta insegurança do que deve fazer, Lula está se tornando uma espécie de rainha da Inglaterra, um chefe de Estado capaz de aglutinar a maioria das forças internas da nação, sobretudo o povo, deixando a tarefa de governo para um colegiado, como se fôssemos uma república parlamentarista, uma monarquia constitucional.
De propósito ou por acaso, fomos governados neste primeiro mês por um regime de gabinete, um gabinete não de todo visível, mas que está longe de ser clandestino.
Como acontece no parlamentarismo, o presidente da República exerce entusiasticamente o poder de representar a nação, nomear os governantes de acordo com a força da representação de cada partido que compõe o grupo que o elegeu e agora o sustenta.
Não quer isso dizer que Lula seja um banana mole, pelo contrário, é homem de decisões claras, tem revelado habilidade e carisma ao administrar as diversas correntes internas do PT. Investido de sua atual função, pretende estender essa capacidade moderadora ao organismo político da nação.
Com sua popularidade em alta, ele transcendeu os partidos e o próprio regime que preside. É realmente um chefe de Estado, um rei legitimado pelo seu sangue de operário, da nobre dinastia dos Silva, que sobreviveu à dos Bourbons, dos Braganças, dos Orleans, dos Romanov, dos Habsburgos, dos Windsors. Nomeou um gabinete, obedecendo as indicações dos partidos e grupos que apoiaram a sua investidura, lançou um programa-ônibus, uma espécie de boi de piranha que poderá ser sacrificado para que a boiada inteira chegue à outra margem do rio em segurança.
O Fome Zero, pela sua obviedade, seria esse boi de piranha, cuja necessidade ninguém poderá negar, mas cuja operação é polêmica e dificilmente será executado como programa de governo, limitando-se a ser uma boa idéia, uma excelente e piedosa intenção, no nível dos movimentos cíclicos de solidariedade que já tivemos: a campanha do Betinho, da Dona Ruth, a sopa do Zarur etc.
No resto, e neste primeiro mês -é bom repetir- Lula desempenhou a contento o papel de rainha da Inglaterra, viajando a serviço, representando com dignidade a nação, repetindo sempre que pode os temas principais de sua campanha eleitoral, mas deixando a tarefa de governar para o seu gabinete, que, em vez de um, parece ter dois primeiros-ministros para as duas áreas básicas da administração pública: a política e a administrativa.
José Dirceu desempenha a função do premier nas tricas e futricas da política, responsabilizando-se pela afinação da orquestra que, sem um maestro competente, pode fragmentar a grande frente formada pelo PT, partido sem união interna em busca da união de outros partidos, alguns ostensivamente fisiológicos.
Sua atuação no episódio da presidência do Senado foi substantiva. Quando julgou que o momento o exigia, assumiu o comando da operação a favor de Sarney. Enquanto Lula viaja de lá para cá, atende a imprensa nacional e internacional, cuida de seu problema no ombro, vai aos fóruns de Porto Alegre e Davos, preocupa-se com a crise na Venezuela e, nas horas vagas, chora quando se emociona, José Dirceu cuida de dar os telefonemas, de convencer os recalcitrantes, tem habilidade e gosto no ofício.
Na área econômica, o premier é o ex-prefeito de Ribeirão Preto, que se saiu muito bem na fase da transição, relacionando-se amigavelmente com a equipe econômica do governo anterior. Há quem diga que, sendo ele um médico, dificilmente dará conta do recado, mas Carlos Drummond de Andrade era farmacêutico de formação e foi bom poeta.
Há ainda, no setor econômico, uma espécie de segundo-ministro, na figura controvertida de Mei- relles, que nem votou em Lula, mas está no Banco Central porque entende do negócio, de maneira que, em linhas gerais, a coisa funcionou relativamente bem, apesar dos tropeços iniciais.
Um ministro suspeito de irregularidades, um ex-torturador do regime militar nomeado para um cargo importante, avanços e recuos na reforma da previdência, terreno em que o governo não sabe conciliar o discurso histórico do PT com a realidade. E até mesmo o mal-entendido da bomba atômica, que estourou realmente como uma bomba. De todas as loucuras das recentes campanhas eleitorais, o único candidato que ousou prometer a bomba nuclear foi o Enéas, que ainda não foi chamado a integrar o governo.
Feitas as contas, o primeiro mês da era Lula não trouxe desgraças, ninguém comeu criancinhas, prática de pedofilia que era atribuída aos comunistas e petistas radicais. Mas a euforia pela nova ordem parece que está acabando. Há complicações à vista, e, com a morte de dona Zica, nem a Estação Primeira da Mangueira será a mesma.


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