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CARLOS HEITOR CONY
Uma rainha da Inglaterra com dois primeiros-ministros
Quem observar isentamente,
sem partidarismo e sem interesse imediato no jogo político,
os primeiros movimentos do novo
governo, que hoje completa o primeiro mês de efetivo exercício,
chegará talvez à mesma conclusão a que cheguei.
Por deliberação própria, por
acordo com seus partidários ou
mesmo por absoluta insegurança
do que deve fazer, Lula está se tornando uma espécie de rainha da
Inglaterra, um chefe de Estado
capaz de aglutinar a maioria das
forças internas da nação, sobretudo o povo, deixando a tarefa de
governo para um colegiado, como
se fôssemos uma república parlamentarista, uma monarquia
constitucional.
De propósito ou por acaso, fomos governados neste primeiro
mês por um regime de gabinete,
um gabinete não de todo visível,
mas que está longe de ser clandestino.
Como acontece no parlamentarismo, o presidente da República
exerce entusiasticamente o poder
de representar a nação, nomear
os governantes de acordo com a
força da representação de cada
partido que compõe o grupo que o
elegeu e agora o sustenta.
Não quer isso dizer que Lula seja um banana mole, pelo contrário, é homem de decisões claras,
tem revelado habilidade e carisma ao administrar as diversas
correntes internas do PT. Investido de sua atual função, pretende
estender essa capacidade moderadora ao organismo político da
nação.
Com sua popularidade em alta,
ele transcendeu os partidos e o
próprio regime que preside. É
realmente um chefe de Estado,
um rei legitimado pelo seu sangue
de operário, da nobre dinastia
dos Silva, que sobreviveu à dos
Bourbons, dos Braganças, dos Orleans, dos Romanov, dos Habsburgos, dos Windsors. Nomeou
um gabinete, obedecendo as indicações dos partidos e grupos que
apoiaram a sua investidura, lançou um programa-ônibus, uma
espécie de boi de piranha que poderá ser sacrificado para que a
boiada inteira chegue à outra
margem do rio em segurança.
O Fome Zero, pela sua obviedade, seria esse boi de piranha, cuja
necessidade ninguém poderá negar, mas cuja operação é polêmica e dificilmente será executado
como programa de governo, limitando-se a ser uma boa idéia,
uma excelente e piedosa intenção,
no nível dos movimentos cíclicos
de solidariedade que já tivemos: a
campanha do Betinho, da Dona
Ruth, a sopa do Zarur etc.
No resto, e neste primeiro mês
-é bom repetir- Lula desempenhou a contento o papel de rainha da Inglaterra, viajando a serviço, representando com dignidade a nação, repetindo sempre que
pode os temas principais de sua
campanha eleitoral, mas deixando a tarefa de governar para o seu
gabinete, que, em vez de um, parece ter dois primeiros-ministros
para as duas áreas básicas da administração pública: a política e a
administrativa.
José Dirceu desempenha a função do premier nas tricas e futricas da política, responsabilizando-se pela afinação da orquestra
que, sem um maestro competente,
pode fragmentar a grande frente
formada pelo PT, partido sem
união interna em busca da união
de outros partidos, alguns ostensivamente fisiológicos.
Sua atuação no episódio da presidência do Senado foi substantiva. Quando julgou que o momento o exigia, assumiu o comando
da operação a favor de Sarney.
Enquanto Lula viaja de lá para
cá, atende a imprensa nacional e
internacional, cuida de seu problema no ombro, vai aos fóruns
de Porto Alegre e Davos, preocupa-se com a crise na Venezuela e,
nas horas vagas, chora quando se
emociona, José Dirceu cuida de
dar os telefonemas, de convencer
os recalcitrantes, tem habilidade
e gosto no ofício.
Na área econômica, o premier é
o ex-prefeito de Ribeirão Preto,
que se saiu muito bem na fase da
transição, relacionando-se amigavelmente com a equipe econômica do governo anterior. Há
quem diga que, sendo ele um médico, dificilmente dará conta do
recado, mas Carlos Drummond
de Andrade era farmacêutico de
formação e foi bom poeta.
Há ainda, no setor econômico,
uma espécie de segundo-ministro,
na figura controvertida de Mei-
relles, que nem votou em Lula,
mas está no Banco Central porque entende do negócio, de maneira que, em linhas gerais, a coisa funcionou relativamente bem,
apesar dos tropeços iniciais.
Um ministro suspeito de irregularidades, um ex-torturador do
regime militar nomeado para um
cargo importante, avanços e recuos na reforma da previdência,
terreno em que o governo não sabe conciliar o discurso histórico
do PT com a realidade. E até mesmo o mal-entendido da bomba
atômica, que estourou realmente
como uma bomba. De todas as
loucuras das recentes campanhas
eleitorais, o único candidato que
ousou prometer a bomba nuclear
foi o Enéas, que ainda não foi
chamado a integrar o governo.
Feitas as contas, o primeiro mês
da era Lula não trouxe desgraças,
ninguém comeu criancinhas, prática de pedofilia que era atribuída
aos comunistas e petistas radicais. Mas a euforia pela nova ordem parece que está acabando.
Há complicações à vista, e, com a
morte de dona Zica, nem a Estação Primeira da Mangueira será
a mesma.
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