São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Um tratado sobre a cabeça de um prego

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A dolfo Montejo Navas foi responsável, em 2001, pela mais abrangente antologia da poesia brasileira contemporânea ("Correspondência Celeste", Madri). Com a publicação de "Na Linha do Horizonte/Conjuros" e do livro de aforismos "Pedras Pensadas", esse espanhol radicado no Rio corre o risco de ser incorporado ao nosso repertório poético.
Seus livros são bilíngües e foram redigidos originalmente na língua materna. Porém, mais do que um estrangeiro que faz literatura nos trópicos, ele talvez seja um caso de dupla cidadania poética, mantendo uma relação de empatia com nossa tradição pós-modernista de depuração das referências extra-textuais: como indica o título duplo de seu livro de poemas, Montejo busca a linha do horizonte que esconjure a paisagem.
Esse rigor aparece na afinidade que ele tem com as artes visuais, em especial com a técnica da caligrafia: "A silhueta das próprias palavras quer ser/ mais abstrata que os sentidos da mão./ O olhar do papel recorta a tinta, os gestos/ da caligrafia. Deixa o mundo afiado." -escreve na série "Conjuros", composta por poemas de quatro versos, nos quais a visualidade surge como registro de conformações provisórias ("o resto da geometria", "naturezas mortas do dia à deriva").
Essa mesma regularidade organiza a primeira parte do livro, intitulada "Na Linha do Horizonte", com dísticos em que um verso parece ser a sombra do outro: "Resta tão pouca luz para acabar o dia/ que o sonho da vida parece com suas imagens"; "Forma sem norma, matéria não paga de lembranças./ Rua deserta mas cheia de cheiros reconhecíveis".
A poética de Montejo encerra uma percepção da vacuidade por trás dos objetos e do silêncio sob as palavras, fazendo com que o poeta se agarre a recortes de realidade (uma superfície, uma letra) como tábua de salvação.
"As formas guardam toda a memória", "o espírito tem a pele da matéria": memória e espírito aspiram ao incomensurável, mas ele toma todo o cuidado para não cair nas exaltações do sublime (cujas altitudes tornam a forma rarefeita). Seu antídoto é o aforismo, essa forma fragmentária que isola e mimetiza uma parcela inteligível do real, que se refugia no detalhe, já que a totalidade é inapreensível e só pode ser vista de esguelha e com parcimônia.
Aqui, já estamos no âmbito das "Pedras Pensadas". Composto por 660 aforismos, o livro exercita um gênero raro no Brasil. O termo aforismo é bastante genérico e compreende epigramas, sentenças, adágios, apotegmas, máximas. Na Antigüidade, essas formas estavam identificadas à sabedoria impessoal dos provérbios.
Após o Renascimento, adquirem espessura subjetiva (como nas máximas de La Rochefoucauld), materializam a perplexidade do indivíduo num mundo cada vez mais opaco; escrita do inacabamento voluntário, o aforismo realiza aquilo que Starobinski descreveu como "transmutação estética do desespero".
Os fragmentos de Montejo se enquadram nesse viés. São desenhos verbais, celebrações, frases nominais que parecem anotações para um romance falhado ("a vida como colagem"), mas que resultam na forma condensada de quem quer escrever "um tratado sobre a cabeça de um prego".
Suas inscrições são o avesso da frase feita ("no fundo, o que um aforismo mais odeia é converter-se em citação"), pois estão impregnadas de obsessões pessoais ("o hipocondríaco vive de indultos"). Sua singularidade nos atinge justamente ao comutar o olhar sobre si mesmo no arco tenso da frase, mostrando que o ironista é um "amolador de palavras".
Essas "Pedras Pensadas" talvez devam a dureza de seu humor e de suas sentenças à linhagem espanhola do "Oráculo Manual" de Baltasar Gracián e das "greguerías" de Ramón Gómez de la Serna. Mas seu diálogo com a lírica de Murilo Mendes ou com os aforismos conceituais de Waltercio Caldas (autor do desenho de capa) também devem deixar um rastro de luminosidade mineral na poesia brasileira.


Na Linha do Horizonte/Conjuros
   
Autor: Adolfo Montejo Navas
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (82 págs.)

Pedras Pensadas
    
Autor: Adolfo Montejo Navas
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 25 (128 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Literatura/crítica: Ensaio de Spitzer vasculha a evasão da alma
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.