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RODAPÉ
Um tratado sobre a cabeça de um prego
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A dolfo Montejo Navas foi
responsável, em 2001, pela
mais abrangente antologia da
poesia brasileira contemporânea
("Correspondência Celeste", Madri). Com a publicação de "Na Linha do Horizonte/Conjuros" e do
livro de aforismos "Pedras Pensadas", esse espanhol radicado no
Rio corre o risco de ser incorporado ao nosso repertório poético.
Seus livros são bilíngües e foram
redigidos originalmente na língua
materna. Porém, mais do que um
estrangeiro que faz literatura nos
trópicos, ele talvez seja um caso de
dupla cidadania poética, mantendo uma relação de empatia com
nossa tradição pós-modernista de
depuração das referências extra-textuais: como indica o título duplo de seu livro de poemas, Montejo busca a linha do horizonte
que esconjure a paisagem.
Esse rigor aparece na afinidade
que ele tem com as artes visuais,
em especial com a técnica da caligrafia: "A silhueta das próprias
palavras quer ser/ mais abstrata
que os sentidos da mão./ O olhar
do papel recorta a tinta, os gestos/
da caligrafia. Deixa o mundo afiado." -escreve na série "Conjuros", composta por poemas de
quatro versos, nos quais a visualidade surge como registro de conformações provisórias ("o resto
da geometria", "naturezas mortas
do dia à deriva").
Essa mesma regularidade organiza a primeira parte do livro, intitulada "Na Linha do Horizonte",
com dísticos em que um verso parece ser a sombra do outro: "Resta
tão pouca luz para acabar o dia/
que o sonho da vida parece com
suas imagens"; "Forma sem norma, matéria não paga de lembranças./ Rua deserta mas cheia
de cheiros reconhecíveis".
A poética de Montejo encerra
uma percepção da vacuidade por
trás dos objetos e do silêncio sob
as palavras, fazendo com que o
poeta se agarre a recortes de realidade (uma superfície, uma letra)
como tábua de salvação.
"As formas guardam toda a memória", "o espírito tem a pele da
matéria": memória e espírito aspiram ao incomensurável, mas
ele toma todo o cuidado para não
cair nas exaltações do sublime
(cujas altitudes tornam a forma
rarefeita). Seu antídoto é o aforismo, essa forma fragmentária que
isola e mimetiza uma parcela inteligível do real, que se refugia no
detalhe, já que a totalidade é inapreensível e só pode ser vista de
esguelha e com parcimônia.
Aqui, já estamos no âmbito das
"Pedras Pensadas". Composto
por 660 aforismos, o livro exercita
um gênero raro no Brasil. O termo aforismo é bastante genérico e
compreende epigramas, sentenças, adágios, apotegmas, máximas. Na Antigüidade, essas formas estavam identificadas à sabedoria impessoal dos provérbios.
Após o Renascimento, adquirem espessura subjetiva (como
nas máximas de La Rochefoucauld), materializam a perplexidade do indivíduo num mundo
cada vez mais opaco; escrita do
inacabamento voluntário, o aforismo realiza aquilo que Starobinski descreveu como "transmutação estética do desespero".
Os fragmentos de Montejo se
enquadram nesse viés. São desenhos verbais, celebrações, frases
nominais que parecem anotações
para um romance falhado ("a vida como colagem"), mas que resultam na forma condensada de
quem quer escrever "um tratado
sobre a cabeça de um prego".
Suas inscrições são o avesso da
frase feita ("no fundo, o que um
aforismo mais odeia é converter-se em citação"), pois estão impregnadas de obsessões pessoais
("o hipocondríaco vive de indultos"). Sua singularidade nos atinge justamente ao comutar o olhar
sobre si mesmo no arco tenso da
frase, mostrando que o ironista é
um "amolador de palavras".
Essas "Pedras Pensadas" talvez
devam a dureza de seu humor e
de suas sentenças à linhagem espanhola do "Oráculo Manual" de
Baltasar Gracián e das "greguerías" de Ramón Gómez de la Serna. Mas seu diálogo com a lírica
de Murilo Mendes ou com os aforismos conceituais de Waltercio
Caldas (autor do desenho de capa) também devem deixar um
rastro de luminosidade mineral
na poesia brasileira.
Na Linha do Horizonte/Conjuros
Autor: Adolfo Montejo Navas
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (82 págs.)
Pedras Pensadas
Autor: Adolfo Montejo Navas
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 25 (128 págs.)
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