São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2009

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Crítica/"Meu Destino É Ser Onça"

Livro cria dimensão literária ao mito tupi

FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Seja dito de saída o essencial: "Meu Destino É Ser Onça", novo livro de Alberto Mussa, é uma grande contribuição aos estudos das culturas indígenas do Brasil, logo, à cultura brasileira e, finalmente, ao patrimônio cultural da humanidade.
Sim, pois o propósito deste livro é nada menos que estabelecer um possível texto mítico original, isto é, "restaurar" a narrativa mitológica tupi em um único texto totalizador, a partir da leitura cruzada das diversas fontes nas quais essa narrativa se encontra espalhada e fragmentada.
O autor relata que tal ideia lhe ocorreu depois de ter lido excertos da "Cosmografia Universal" -obra do frade André Thevet, que conviveu com os tupinambás no Brasil em meados do século 16-, "a fonte primária mais extensa de que se dispõe para o conhecimento da mitologia dos nossos antepassados". Mussa vislumbrou aí a possibilidade de "incorporar a epopeia tupinambá a nossa cultura literária". Para tanto, não bastaria apenas traduzir a obra de Thevet.
Seria preciso "devolver à narrativa sua literariedade". Essa estaria no "sentido profundo", no "assunto fundamental" dos fragmentos míticos, que teriam escapado a Thevet e às demais fontes. O autor insiste na dimensão literária de seu desígnio. Alega que, "porque quis fazer literatura", produziu um texto novo, em português, "que corresponde a um possível original tupi, no nível estritamente teórico do seu encadeamento lógico". Aqui é possível sugerir um ajuste de foco.

Adequação
Não é que falte "literariedade" ao texto estabelecido por Mussa. Mas é preciso compreender a adequação dessa palavra a este caso. O texto mítico "restaurado" não apresenta -nem deveria, dado seu objetivo- uma escrita com procedimentos particularizadores. As características de seu texto são aquelas do gênero mítico: estão lá a parataxe (as sucessivas frases justapostas sem elementos de ligação), o pretérito imperfeito aspectual (a dar a sensação de um tempo contínuo, originário), o pretérito perfeito que se lhe segue (marcando os acontecimentos instauradores), a conjunção "e" no começo de frases que elencam as coisas criadas, a concisão, as imagens etc.
Ou seja, o trabalho extraordinário deste livro não é propriamente literário (ainda que seu resultado o seja), no sentido da realização de uma escrita singular -mas intelectual. O decisivo no estabelecimento da narrativa mitológica é a leitura cruzada que Mussa faz das diversas fontes, operando múltiplos critérios simultaneamente a fim de decidir sobre informações falsas ou verdadeiras, características de personagens, encadeamentos de episódios etc., por meio dos quais torna-se-lhe possível postular o sentido do mito e o recompor.

Literariedade
Dadas algumas voltas no parafuso, reencontramos aqui a questão da literariedade. Deleuze dizia que a composição é um elemento fundamental do estilo. Ora, o estilo, neste livro, situa-se essencialmente aí, em sua estrutura, no jogo de interpretação recíproca que se tece entre suas partes.
O presente livro é uma verdadeira tese, no sentido rigoroso da palavra. Tese que, partindo de um conjunto de hipóteses interpretativas, deságua num original possível -e resplandecente: o mito do mito.


FRANCISCO BOSCO , ensaísta e letrista, é autor de "Folha Explica Dorival Caymmi" (Publifolha).


MEU DESTINO É SER ONÇA
Autor: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 39 (272 págs.)
Avaliação: ótimo



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