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Crítica/"Meu Destino É Ser Onça"
Livro cria dimensão literária ao mito tupi
FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Seja dito de saída o essencial: "Meu Destino É Ser
Onça", novo livro de Alberto Mussa, é uma grande
contribuição aos estudos das
culturas indígenas do Brasil, logo, à cultura brasileira e, finalmente, ao patrimônio cultural
da humanidade.
Sim, pois o propósito deste livro é nada menos que estabelecer um possível texto mítico
original, isto é, "restaurar" a
narrativa mitológica tupi em
um único texto totalizador, a
partir da leitura cruzada das diversas fontes nas quais essa
narrativa se encontra espalhada e fragmentada.
O autor relata que tal ideia
lhe ocorreu depois de ter lido
excertos da "Cosmografia Universal" -obra do frade André
Thevet, que conviveu com os
tupinambás no Brasil em meados do século 16-, "a fonte primária mais extensa de que se
dispõe para o conhecimento da
mitologia dos nossos antepassados". Mussa vislumbrou aí a
possibilidade de "incorporar a
epopeia tupinambá a nossa cultura literária".
Para tanto, não bastaria apenas traduzir a obra de Thevet.
Seria preciso "devolver à narrativa sua literariedade". Essa estaria no "sentido profundo", no
"assunto fundamental" dos
fragmentos míticos, que teriam
escapado a Thevet e às demais
fontes. O autor insiste na dimensão literária de seu desígnio. Alega que, "porque quis fazer literatura", produziu um
texto novo, em português, "que
corresponde a um possível original tupi, no nível estritamente teórico do seu encadeamento lógico". Aqui é possível sugerir um ajuste de foco.
Adequação
Não é que falte "literariedade" ao texto estabelecido por
Mussa. Mas é preciso compreender a adequação dessa palavra a este caso.
O texto mítico "restaurado"
não apresenta -nem deveria,
dado seu objetivo- uma escrita
com procedimentos particularizadores. As características de
seu texto são aquelas do gênero
mítico: estão lá a parataxe (as
sucessivas frases justapostas
sem elementos de ligação), o
pretérito imperfeito aspectual
(a dar a sensação de um tempo
contínuo, originário), o pretérito perfeito que se lhe segue
(marcando os acontecimentos
instauradores), a conjunção "e"
no começo de frases que elencam as coisas criadas, a concisão, as imagens etc.
Ou seja, o trabalho extraordinário deste livro não é propriamente literário (ainda que seu
resultado o seja), no sentido da
realização de uma escrita singular -mas intelectual. O decisivo no estabelecimento da
narrativa mitológica é a leitura
cruzada que Mussa faz das diversas fontes, operando múltiplos critérios simultaneamente
a fim de decidir sobre informações falsas ou verdadeiras, características de personagens,
encadeamentos de episódios
etc., por meio dos quais torna-se-lhe possível postular o sentido do mito e o recompor.
Literariedade
Dadas algumas voltas no parafuso, reencontramos aqui a
questão da literariedade. Deleuze dizia que a composição é
um elemento fundamental do
estilo. Ora, o estilo, neste livro,
situa-se essencialmente aí, em
sua estrutura, no jogo de interpretação recíproca que se tece
entre suas partes.
O presente livro é uma verdadeira tese, no sentido rigoroso
da palavra. Tese que, partindo
de um conjunto de hipóteses
interpretativas, deságua num
original possível -e resplandecente: o mito do mito.
FRANCISCO BOSCO , ensaísta e letrista, é autor
de "Folha Explica Dorival Caymmi" (Publifolha).
MEU DESTINO É SER ONÇA
Autor: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 39 (272 págs.)
Avaliação: ótimo
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