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CINEMA ESTRÉIAS
"Buena Vista Social Club" é retrato de dignidades
AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas
O maior feito de Wim Wenders
em "Buena Vista Social Club", o
documentário (que chega hoje a
São Paulo, logo após perder o Oscar da categoria para "One Day in
September", no último domingo), foi reproduzir harmonicamente em filme a encantadora
simplicidade do som da "Buena
Vista Social Club", a banda de veteranos músicos cubanos reunida
em Havana por Ry Cooder.
O sucesso da empreitada de
Cooder inclui mais de 1 milhão de
CDs vendidos, um Grammy, uma
série de novas gravações e toda
uma revalorização de boleros e
mambos cuja delicadeza parecia
condenada à extinção na era de
Jennifer Lopez e Ricky Martin.
Wenders estrutura seu documentário mais generoso e intimista a partir de pouquíssimos
elementos. No breve prólogo,
Cooder nos põe em sintonia com
o habitat de seus músicos num
passeio de moto pela puída Havana. No mais, o filme alterna trechos de shows de 1998 da banda
em Amsterdã e em Nova York
com perfis de seus principais
membros, colados a instantâneos
do cotidiano cubano.
Com raras exceções, a idade dos
músicos varia entre 70 e 90 anos.
A história de cada um os afirma
como talentos precoces, vários
dos quais resgatados por Cooder
da aposentadoria. Este engraxava
sapatos, aquele enrolava charutos, outros jogavam dominó.
Se a banda lhes devolveu a música, a câmera resgata-lhes a história. Wenders filma cada personagem num cenário vazio -um
bar, uma casa, uma praça, uma
sala de ensaios. A câmera circunda-os incansavelmente como esfinges nas areias do deserto.
E Wenders ouve. Pela primeira
vez em seus documentários desde
"Chambre 666" (1982), o cineasta
alemão aposenta sua onipotente
narração em "off". Em nenhum
instante, eleva-se sua voz -e raras vezes ela se fez ouvir com tamanha eloquência. "Buena Vista"
sabe confiar no registro do real,
frisado pela textura toda própria
das imagens eletrônicas captadas
por câmeras digitais.
Wenders dedica cada capítulo a
um personagem, na forma de retratos impressionistas, combinando depoimento e extratos de
solos nos shows. O cantor Ibrahim Ferrer logo se impõe sobre os
demais, lembrando antes um
misto de Zé Keti e Paulinho da
Viola do que o "Nat King Cole cubano" descrito no filme.
O violonista Compay Segundo é
um legítimo dândi habanero, partindo para o sexto filho entre o
"puro" da manhã e o da tarde. Já
Rubén González reencontra o
piano após quase dez anos de separação -e o toca como ao corpo
de uma velha amante recuperada.
Wenders conclui seu documentário com a triunfal apresentação
do Buena Vista Social Club no mítico Carnegie Hall nova-iorquino,
em julho de 1998. Sua câmera voa
da nobre mas decadente Havana
de Castro à nobre e abundante
Manhattan de Giuliani. Vários
significados se sobrepõem, como
as tintas nas descascadas fachadas
dos edifícios de Havana.
Há, do geral ao particular, o restabelecimento de um eixo musical mutuamente inspirador na
primeira metade do século 20, a
revalorização de ritmos cubanos
quase esquecidos, o sucesso do
projeto de Cooder, a vitória pessoal de cada músico.
Na estudada montagem da sequência final, Wenders frisa o
subtexto político desta conclusão.
A câmera deixa o palco nova-iorquino para flanar uma última vez
pelas ruas de Havana. Repetem-se as imagens dos velhos carros,
prédios decadentes, gente modesta e simpática.
"Esta revolución és eterna",
proclama um cartaz. Em seguida,
falta um "r" em outro letreiro,
identificando o imponente teatro
Karl Marx. "Creemos en los sueños", sustenta uma frase pintada
num muro.
A bandeira cubana acrescenta
ecos patrióticos a esses sonhos.
Ela é flagrada ao vento no deslumbrante beira-mar do Malecón
de Havana e levada às mãos da
banda em pleno palco do Carnegie Hall.
Em vez de se render à propaganda pró ou anticastrista, Wenders assina uma sofisticada ode à
cultura e ao povo cubano, uma espécie de equivalente audiovisual a
"Havana de um Infante Defunto",
de Cabrera Infante. Tudo que
quer dizer cristaliza-se numa
imagem inesquecível -um solo
em close no show nova-iorquino.
Naquele momento, o rosto de
Ibrahim Ferrer concentra toda a
dignidade do mundo.
Avaliação:
Filme: Buena Vista Social Club
Direção: Wim Wenders
Produção: Alemanha/EUA/França/
Cuba, 1999
Com: Ibrahim Ferrer, Compay Segundo,
Rubén González e Eliades Ochoa
Quando: a partir de hoje, no TopCine 1 e
TopCine 2
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