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Livros
"Maquiavel não era maquiavélico"
Especialista no autor, Newton Bignotto afirma que "leitura parcial" ajudou a forjar o "maquiavelismo" que conhecemos
Para professor, PT não surpreenderia Maquiavel, que escreveu sobre a diferença entre a conquista e a manutenção do poder
DA COORDENAÇÃO DE ARTIGOS E EVENTOS
A seguir, trechos da entrevista que Newton Bignotto, autor
dos livros "Maquiavel" (Jorge
Zahar, 2003) e "Maquiavel Republicano" (Loyola, 1991), além
de outras obras sobre republicanismo, concedeu à Folha.
(UIRÁ MACHADO)
FOLHA - A idéia de maquiavelismo
sempre precede o nome de Maquiavel e sua obra. O sr. considera justo o
termo "maquiavélico"?
NEWTON BIGNOTTO - O termo
maquiavélico diz respeito à maneira como a obra de Maquiavel foi lida já a partir do século
16. Alguns leitores se chocaram
com suas idéias a respeito do
funcionamento do poder e a tomaram como uma ameaça para
os valores cristãos vigentes.
Mas não podemos simplesmente descartar o "maquiavelismo" como uma má interpretação. Mesmo que seja, incorporou-se à história da obra e
das polêmicas que gerou. Para
compreender Maquiavel é necessário saber por que o chamaram de "maquiavélico".
FOLHA - Como surge o termo?
BIGNOTTO - O "maquiavelismo"
nasce de alguma forma com a
condenação dos livros do autor
ao Index. A partir daí, as leituras desfavoráveis se sucedem.
Na Inglaterra, sua má fama é
explorada na literatura e no
teatro no século 17. Maquiavel
é diretamente associado ao diabo na figura do "old Nick".
As críticas ajudaram a forjar
a visão do maquiavelismo como pensamento do engano, da
trapaça. É assim que "maquiavélico" veio fazer parte de quase todas as línguas ocidentais.
FOLHA - O sr. diria que o Maquiavel
é maquiavélico?
BIGNOTTO - Da maneira como
compreendemos o termo, podemos dizer que não era maquiavélico. Sua conduta não tinha nada de ambígua e sua opção pela república como a melhor forma de governo permaneceu até o fim da vida.
FOLHA - Mas ele nunca foi um defensor da boa-fé na política. Pelo
contrário.
BIGNOTTO - O que chamamos
de "boa-fé" no mundo privado
se converte muito facilmente
em ingenuidade no mundo público, e isso é uma das fontes da
ruína de muitos governantes. É
possível manter a crença em
valores, como no caso de Maquiavel com os valores republicanos, sem perder de vista as
condições reais que presidem
as lutas políticas.
FOLHA - Por que o "Maquiavel republicano" não é tão conhecido?
BIGNOTTO - As leituras negativas, que em geral se inspiram
no "Príncipe", nunca levam em
conta os "Discursos", obra
complexa e densa, que não possui o mesmo caráter direto e
provocador da obra mais conhecida. Com isso, sobreviveu
para o grande público uma visão parcial e redutora da filosofia de Maquiavel.
FOLHA - Podemos dizer, então, que
ele foi injustiçado?
NEWTON BIGNOTTO - Não sei se
injustiçado, mas certamente
compreendido de forma parcial. A visão da leitura do conjunto de seus escritos é muito
diferente daquela propagada
pelo maquiavelismo vulgar.
Um olhar do conjunto da
obra de Maquiavel permite
compreender melhor a profunda transformação que seu pensamento produziu na filosofia
política ocidental.
De forma criativa, ele atacou
ao mesmo tempo a tradição
cristã e o humanismo que o
precedeu e se serviu dos escritores da Antigüidade para estabelecer parâmetros novos à política. Ele procurou desvendar
os meandros de seu tempo e o
que ele continha de universal.
FOLHA - Como se relacionam "O
Príncipe" e os "Discursos"?
BIGNOTTO - Os pressupostos
teóricos são os mesmos, mas os
objetos, não. Ambas partem da
idéia de que todo estudo do
mundo político deve se basear
numa análise das coisas tal como elas são em sua "verdade
efetiva", e não na maneira como gostaríamos que elas fossem num mundo ideal.
FOLHA - No ano passado, o ator
Paulo Betti disse que não é possível
fazer política sem colocar a mão na
merda. Esse é um tipo de realismo típico de Maquiavel?
BIGNOTTO - A busca pela "verdade efetiva das coisas" é antes
de mais nada uma atitude analítica, que nos ensina a compreender corretamente o objeto que chamamos de "política"
e suas determinações. Ela nos
ensina a evitar a abordagem do
mundo público apenas a partir
de ideais, que não podem ser
realizados e que acabam gerando frustrações.
Mas Maquiavel não diz que a
vida política é sempre um fruto
podre. Ao contrário, em certas
ocasiões, é possível produzir
grandes obras, agir de maneira
arguta e eficaz, com "virtù", e
isso sim caracteriza os grandes
atores políticos, não o simples
mergulho nas disputas cotidianas, que povoam e muitas vezes
empobrecem a cena política.
FOLHA - Muitos consideram que
Lula e o PT, quando chegaram ao poder, mudaram a forma de agir. Maquiavel teria sido iludido?
BIGNOTTO - O PT certamente
mudou. Acho, entretanto, que
Maquiavel não teria se iludido,
pois um dos grandes temas do
"Príncipe" é justamente o da
diferença entre a conquista do
poder e o de sua manutenção.
Nesse sentido, todo aquele que
chega ao poder tem de mudar
algo se pretende mantê-lo.
DISCURSOS SOBRE A PRIMEIRA DÉCADA DE TITO LÍVIO
Autor: Nicolau Maquiavel
Lançamento: Martins Fontes
Preço: (R$ 58; 514 págs.)
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