São Paulo, quarta-feira, 31 de maio de 2000


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Arnaldo Saccomani hoje orienta projetos de rhythm'n'blues, como o 1º CD de Hannah Lima
Caçador de sucessos (de Tim Maia a Tiririca)


Produtor paulista relembra sua trajetória, das gravadoras ao rádio, de Mutantes a Mamonas


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Tubarão navegando no mar infestado das gravadoras, Arnaldo Saccomani, 50, é bem menos famoso que os peixes que vem encontrando em sua rota por mais de três décadas de atividade.
Que peixes? O produtor paulistano participou, desde o final dos 60, da construção do sucesso de figuras pop tão díspares quanto Tim Maia, Rita Lee, Ronnie Von, Hyldon, Fábio Jr., Carrapicho, Mamonas Assassinas, Tiririca...
Sua trajetória é a de quem viveu de tudo na indústria, dos bastidores tropicalistas e da criação da soul music nacional ao mundo cão de Mamonas e Tiririca.
Exilado desse mercado na segunda metade dos 70, refugiou-se no rádio, agindo para o sucesso de emissoras vorazes como a Jovem Pan -ainda assim, nega por onde andou a presença do jabá, o comércio clandestino do sucesso entre gravadoras e rádios.
Hoje, participa de projeto da paulista Abril Music, de transformação do rhythm'n'blues em gênero brasileiro, produzindo artistas como Benné e Hannah Lima -uma planilha para usurpar a hegemonia baiana do axé?
Sabedor dos trâmites, lança barbatanas de compositor sobre Fat Family e Travessos, com quem crava números um nas listas de mais ouvidas. Em entrevista, revisa trajetória de farejador de talentos a caçador de sucessos.

Folha - Como você começou a lidar com música?
Arnaldo Saccomani -
Comecei tocando. Tinha uma banda cover dos Beatles. Acompanhamos uma artista que foi importante por uns dois ou três anos, chamada De Kalafe. Foi a primeira cantora de protesto no Brasil, depois se mudou para o México e chegou a ser uma estrela lá. Comecei a compor para ela músicas de protesto mesmo, bem agressivas.
Mas eu também fazia canções mais populares e fui compor para Ronnie Von. Fui me tornando músico de estúdio, virei assistente de produção de Manuel Barenbein, meu ídolo e professor. Estive com ele em todos os trabalhos da tropicália. Levava sanduíche, produzia, chamava táxi, puxava cabo, dava palpite...
Sr. André Midani, o patrão, me colocou para assessorar os Mutantes, também na tentativa de fazer da Rita Lee uma cantora solo. Defendi desde o início que era a hora dela. Estou resumindo e banalizando uma situação delicadíssima. Não era conversa de um minuto. Não lembro muito, mas acho que isso começou a gerar uma disputa de egos muito forte na questão artística. Isso não acaba bem, nunca, ainda mais no Brasil, que não tem todo esse profissionalismo -nos EUA há vários grupos em que ninguém é amigo de ninguém, mas "vamos ganhar essa grana".

Folha - O que era o disco que você e o maestro tropicalista Damiano Cozzella fizeram com Ronnie Von?
Saccomani -
Cozzella é outro dos meus ídolos. Para mim, foi o maior músico concretista, com Rogério Duprat -fizeram curso de música eletrônica em Paris, em 51, anos à frente. Fez parte decisiva e marcante de todo o processo tropicalista. Não me pergunte por que não falam mais dele, me estranha muito. Virou funcionário de orquestra, não sei onde está hoje. Eu queria trabalhar com ele e tinha um ídolo popular disposto a tal loucura. Era Ronnie, entediado com o que vinha fazendo. Havia ganhado muito dinheiro, mas estava de saco cheio.
Mas Ronnie nunca quis ser tropicalista, o que ele queria era ser diferente do Roberto Carlos. Roberto continuou sendo bem popular, e Ronnie partiu para elitizar. Depois não trabalhei mais com ele. Não estou falando que quem trabalhou não fez certo, mas ele se encaminhou para uma coisa popular demais, na minha opinião. Voltamos a trabalhar juntos mais tarde, produzi "Cachoeira", um grande sucesso.

Folha - Como surgiu Tim Maia?
Saccomani -
Na época, havia duas grandes rádios AM, a Excelsior, mais roqueira, e a Difusora, mais negra. Sempre comentávamos que a Difusora não tinha produtos brasileiros para tocar. Tim Maia entrou aí, cantando de um modo diferente, mais americano um pouco. Já havia gravado um compacto em inglês, e a idéia de fazer em português era atender um mercado com mídia.

Folha - Então foi uma maquinação de bastidores?
Saccomani -
Foi. Não o talento dele, mas a contratação foi. Vamos dizer que essa proposta de ter alguém mais negro foi porque se pretendia atingir mais a juventude e as classes mais pobres. Mas também foi porque vimos que Tim cantava muito. Fui encontrá-lo numa chácara lá no Embu, todo vestido de branco, com um monte de crianças ao redor. Não me esqueço da noite em que ele gravou "Azul da Cor do Mar", com Cassiano no estúdio. Gravou de primeira, emocionante.
Apresentei "Primavera" e "Azul da Cor do Mar" numa convenção da Philips, que na época tinha uma série de produtores. Todo mundo foi contra, todo mundo torceu o nariz. Seu Midani autorizou o lançamento, levamos o compacto à Difusora. Demorou uns dois meses para tocar. Hoje todo mundo é pai do Tim Maia, mas a história foi assim.
Depois, continuei um tempo na Philips e participei de projetos populares como "Na Rua, na Chuva, na Fazenda", de Hyldon. Nesse meio caminho, fiz trilhas de novela da TV Tupi, como "Mulheres de Areia" e "Beto Rockefeller", que eram sucessos absurdos. Depois participei com Barenbein daquela bobagem dos artistas cantando em inglês. Era contra.
Dei um tempo fora do meio, fui trabalhar numa construtora, até ser chamado para trabalhar em rádio. Estava numa derrocada completa de grana, até que me tornei um radialista, modéstia à parte, de muito sucesso. Fiquei sete anos na Antena 1, depois fui para a Jovem Pan, mais seis anos.

Folha - Existia jabá?
Saccomani -
Na época nem havia promoção de rádio e gravadora.

Folha - Existe jabá?
Saccomani -
Na minha experiência como radialista, desafio qualquer pessoa que diga que estive envolvido com qualquer tipo de negociação nas rádios em que trabalhei. De quando saí da rádio até hoje, muita coisa mudou. Hoje as gravadoras estão fazendo promoções de marketing com as rádios, e as rádios estão abertas.

Folha - Na Jovem Pan, você trabalhou com Tutinha, que admite abertamente a existência do jabá.
Saccomani -
Vou falar uma coisa do fundo do meu coração: se o cara acha que uma música não vai dar audiência para sua rádio, pode botar US$ 1 milhão que ele não toca. Passei a trabalhar no segmento mais popular porque fiquei cansado de ser Robin Hood, de defender bandeiras. Não que tenha me prostituído.

Folha - Qual foi o seu papel na criação dos Mamonas Assassinas?
Saccomani -
Fui eu quem negociei o contrato deles. Mostrei para algumas gravadoras, fui totalmente ironizado por todas. Mandei para João Augusto (da EMI, hoje na Abril), que também achou uma porcaria. O filho dele gostou, aí foi feito o disco. Meu nome só aparece nos agradecimentos, o que gerou uma grande briga minha com João Augusto. Ganhei R$ 2.000 pela produção artística e musical dos Mamonas.

Folha - Não soa estranho vocês terem brigado tão feio e estarem trabalhando juntos de novo?
Saccomani -
A verdade foi restabelecida no livro dos Mamonas. Não ganhei nenhum tostão a mais, mas não tenho muito do que reclamar porque aceitei como me foi proposto. Quando eles morreram, acabou a briga.

Folha - Aí você fez o Tiririca.
Saccomani -
Ouvi "Florentina" numa fita pirata que um sócio meu trouxe. Como é que um cara tinha a cara-de-pau de fazer uma música daquelas? Chamei ele aqui, lancei seu CD pela Sony. Achei gostoso ir na contracorrente. Era o auge do humor, fui no forró. Naquela onda de Olodum, fui achar umas indiazinhas em Manaus, o Carrapicho. Estava vindo um rap aí, achei o Sampa Crew na periferia de São Paulo. Senti que Pepê & Neném podiam entrar nessa história, fui lá.

Folha - Você foi empresário de Tiririca. Não pensa na crueldade por trás da exploração desses artistas de um sucesso só?
Saccomani -
Estive com ele na semana passada, só faltou a gente chorar. Foi uma maldade muito grande. Ele é uma pessoa analfabeta, de um talento popular como raramente se viu no Brasil. Não sei como alguém pode chamar Tiririca de racista. Mas nunca me recusei a um desafio, mesmo sabendo que poderia ser politicamente incorreto. Nunca esperei do Tiririca mais que "Florentina".


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