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"A ARTE DO ROMANCE"
Prefácios de Henry James são reunidos em antologia
Leituras do leitor do leitor de si mesmo, ou a arte da ruína
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Em 1909, acabou a edição iniciada dois anos antes de
obras seletas de Henry James
(1843-1916), revistas e prefaciadas
pelo autor. A "New York Edition"
viria a se tornar a mais célebre de
todas as edições de James, em que
pesem as mudanças radicais no
texto, comparado aos das anteriores, ou até por isso mesmo. Os
prefácios escritos por ele formam,
em si, uma coleção extraordinária
de comentários à arte do romance, de interesse central para todo
leitor da literatura moderna, em
língua inglesa ou qualquer outra.
De um total de 18, o crítico da
Folha Marcelo Pen traduziu oito
prefácios, sete deles inéditos até
hoje em português. O livro inclui
fartas notas e um monumental
prefácio aos prefácios -um dos
trabalhos mais importantes já publicados sobre o autor em nosso
país. Minucioso, paciente, labiríntico, esse prefácio assume aos
poucos natureza análoga aos prefácios de James, que podem ser lidos como obras literárias de interesse próprio, com força inventiva comparável aos objetos de sua
atenção.
As vertiginosas dobras do autor
sobre si mesmo adquirem ali um
caráter de literatura no segundo
grau, na "aventura reversa" de ler
seus próprios livros. Ele agora
narra a "estória das próprias estórias" de modo a pôr em xeque a
representação de tudo: da realidade, dos livros, de si. E, se os prefácios são "estórias do desenvolvimento da nossa imaginação", isso
ganha triplo relevo quando se
pensa em James como expressão
máxima do "gênio da consciência" (no entender de Harold
Bloom), criador de "situações
narrativas" onde a fisionomia
"problemática", até mesmo "inconfessável" do próprio fabulista
vem à tona (Roberto Schwarz).
O quiproquó só aumenta quando entra em cena mais esse personagem, um tradutor e crítico de
nome inverossímil, "Marcelo
Pen", que só escapa da ironia jamesiana na vida real, não na do livro, onde assume o papel de narrador. Como escreve James num
dos prefácios, as relações "não param em lugar nenhum". Elas tragam também o crítico do crítico
-leitor do leitor do leitor de si
mesmo. E agora, leitor, tragam
você.
As conclusões que Pen vai tirar
disso tudo são surpreendentes e
importantes. Até chegar lá, o percurso inclui uma apresentação esclarecedora de alguns dos principais estudiosos dos prefácios de
James. É a história das estórias das
estórias, abordando obras de
Percy Lubbock (1921), Richard
Blackmur (1934) e Wayne C.
Booth (1968), e tocando ainda em
intérpretes mais recentes, como
Camille Paglia e Eve Kosofsky
Sedgwick.
E a tradução? Admirável na escolha do tom e no controle do ritmo, aqui e ali deixa escapar pequenas coisas, que saltam aos
olhos por serem exceção. Transformar uma regência passiva como ""Roderick Hudson" was begun in Florence...", por exemplo,
na frase direta "Iniciei "Roderick
Hudson" em Florença..." pode incomodar aos ouvidos mais sensíveis. Mas ouvidos com esse grau
de sensibilidade serão também os
que terão maior interesse em entender as mudanças.
"É a arte que cria a vida, cria interesse, cria importância", escreveu famosamente o autor do nosso autor. Tanto maior a ironia
quando a vida que essa arte cria,
como no caso dos prefácios, é a do
próprio James. Deve-se a Marcelo
Pen a revelação da estória "oculta" desses textos, que fazem da
crítica uma forma de autobiografia. E tanto maior a pungência
deste segredo quando se pensa na
literatura de James como uma estupenda ruína, incapaz afinal de
se apropriar da realidade -exceto, quem sabe, ao fazer desse fracasso seu último e mais profundo
tema. O que faz dos prefácios bem
mais do que textos acessórios: pelo contrário, os "fracassados"
contos e romances vêm se completar na crítica, que o autor escreve ele mesmo, dando mais
uma volta no parafuso.
Mais uma volta, não a última. Se
a arte do romance serve à arte da
crítica, essa, de sua parte, prepara
o advento da arte da tradução,
que devolve os textos ao enigma.
Os prefácios não só ficam entre as
maiores obras de Henry James,
mas entre as maiores que já foram
escritas sobre a arte da ficção. E é à
sombra desse exemplo, no inusitado espaço entre ficção, tradução
e crítica, que o crítico agora vem
firmar seu próprio nome, corajosa e amorosamente sobreposto ao
do autor.
A Arte do Romance
Organização e tradução: Marcelo Pen
Editora: Globo
Quanto: R$ 39 (320 págs.)
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