São Paulo, quarta-feira, 31 de maio de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Planeta dos macacos


As teorias da conspiração são uma adaptação moderna da histeria animal que Stanley Kubrick filmou em "2001"

QUE VERGONHA. Eu queria escrever sobre "O Código Da Vinci", mas tenho dois problemas básicos. Não li o livro e não assisti ao filme. Calma, a história é mais complexa: o livro, eu li, mas só até metade. A certa altura, senti um cheiro pastoso à mandioca queimada e percebi, sem surpresa, que eram meus neurônios derretendo. O filme fui assistindo. Atenção ao gerúndio: assistindo. Ou seja: assistia, adormecia, assistia, adormecia. Por outras palavras, sou um verdadeiro especialista no assunto.
Mas quem não é? Só nesta semana, li na imprensa inglesa que 60% dos leitores de "O Código Da Vinci" (se preferirem, 7 milhões de pessoas) acreditam firmemente na "verdade" do "Código". Cuidado, gente: estamos a falar da pátria de Newton, Darwin ou Peter Cook. E que "verdade" é essa? Pois é: parece que Jesus e Madalena casaram na Galiléia e deixaram descendência. A descendência anda por aí, 2.000 anos depois. Não olhem para mim. Está bem, olhem, mas juro que não sou.
O problema é que esta "verdade" foi escondida pela igreja: em 325 d.C., o imperador Constantino, apostado em transformar o cristianismo em religião oficial, decretava a divindade de Jesus. Madalena fora marginalizada pela igreja, procurou refúgio na França e, sei lá, terminou seus dias a fazer camembert (não li esta parte; adormeci, idem). Infelizmente para Constantino, para a igreja e para a hipocrisia do cristianismo, existe um grupo, chamado Priorado do Sião, que conhece tudo e ameaça contar. O livro e o filme começam com a morte de um membro do clube, assassinado por um louco da Opus Dei. Não vou relatar o fim para não estragar a surpresa. A começar pela minha.
E a começar pela vossa. Nos últimos dias, familiares e amigos, dominados pelo livro de Dan Brown, têm perguntado se a "verdade" do "Código" é, digamos, verdade mesmo. Suspiro. Estou velho. Estou cansado. Dizer o quê? Que o Priorado é invenção de um fantasista francês, Pierre Plantard, condenado por fraudes? Que o casamento de Jesus e Madalena pode entusiasmar as massas que assistiram a "Uma Linda Mulher" -mas que não encontra suporte em nenhum tipo de texto, canônico ou apócrifo?
Não vale a pena. Deitado no sofá, onde passo meus dias, reparo então em notícia científica que se adapta ao momento: homens e macacos transaram, algures, no passado. Mais: de acordo com a ciência, a nossa espécie é resultado dessas horas de amor íntimo. Pessoalmente, nunca duvidei. Não falo apenas de certas feições símias, sobretudo entre a classe política. Falo de hábitos: hábitos mentais que sobreviveram a tudo. Inventamos o fogo. A roda. A agricultura. Descobrimos continentes. E planetas. Mas persistiu sempre no fundo de nós esse macaquito primitivo que olha para os mistérios do mundo como se o cosmos fosse dominado por forças misteriosas. As teorias da conspiração são uma adaptação moderna da histeria animal que Kubrick filmou em "2001". E que passou para os nossos genes. Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria citar o "Código" e os milhões de macaquitos que leram e acreditaram.


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