São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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HQ de formação

Na premiada "Retalhos", o americano Craig Thompson reconta o primeiro amor e as brincadeiras com o irmão e exorciza traumas que marcaram sua juventude

LEONARDO CRUZ
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

A infância e a adolescência de Craig Thompson não foram das mais fáceis. Humilhado por colegas de escola, vítima de abuso sexual, educado sob um cristianismo rigoroso, este garoto criado numa comunidade rural do provinciano Estado de Wisconsin foi um típico "loser" americano, atormentado pelas memórias até tornar-se adulto. Sorte nossa. Os fantasmas da primeira idade serviram de inspiração para "Retalhos", bela história em quadrinhos autobiográfica, 592 páginas que dialogam com os romances de formação da literatura clássica.
Lançado no exterior em 2003, quando o autor tinha 27 anos, "Retratos" chega agora ao Brasil após merecidamente receber algumas das principais honrarias do mundo da HQ, como o Eisner e o Harvey Awards nos EUA (2004) e o prêmio da crítica francesa no tradicional Festival de Angoulême (2005).
O traço detalhista de Thompson não desenha apenas agruras. As brincadeiras e brigas com o irmão caçula e, principalmente, a relação com Raina, a primeira namorada, guiam o fio narrativo de "Retalhos".
À Folha o autor conta que "tinha uma motivação simples" quando começou a escrever a obra, no segundo semestre de 1999. "Estava frustrado com o predomínio das histórias de fantasia bombásticas no meio da HQ. Queria fazer um livro longo que deixasse de lado as sequências de ação para capturar uma experiência íntima e silenciosa, como a de dividir a cama com alguém pela primeira vez. Os temas autobiográfico e religioso se encaixaram."
Thompson afirma que, quando fez "Retalhos", estava "especialmente inspirado" pelos escritos de Marcel Proust e Vladimir Nabokov e que absorvia as obras de quadrinistas franceses como David B., autor de "Epilético" (1996), história também autobiográfica.
A fé ocupa espaço central nas memórias de Thompson, e "Retratos" é pontuado pelo crescente questionamento dos preceitos da Igreja Batista que o autor frequentava na infância. Ao informar à família que exporia o passado de todos em uma "graphic novel", Thompson recebeu o apoio do irmão, mas não dos pais. "Eles reagiram muito mal, me repreenderam, dizendo que o livro era um "instrumento do demônio" e que eu iria para o Inferno."
O quadrinista diz que seus pais hoje respeitam sua descrença e que o sucesso da obra do capeta virou motivo de orgulho para eles. "Muitos dos fãs do livro são cristãos devotos, até pastores, que veem em "Retalhos" um retrato honesto da espiritualidade de alguém."

Paixão abaixo de zero
Outro elemento importante da obra é o frio -Wisconsin tem invernos rigorosos, e grande parte da HQ se desenrola sob neve. "Talvez as temperaturas extremas tenham ajudado a congelar aqueles momentos, como memórias ancoradas por fortes sensações físicas", comenta Thompson. "Minha relação com Raina, como muitas experiências de infância, foi curta e efêmera -ligada a uma única estação de um único ano, e é impossível tirar toda aquela neve de minhas fotografias internas", conclui, poeticamente. Após "Retalhos", Thompson lançou em 2004 "Carnet de Voyage", com registros de sete meses de andanças pela Europa e pelo norte da África. O próximo livro será "Habibi", obra sobre o mundo árabe, catatau em que ele trabalha há cinco anos. "Tenho mantido uma rotina de desenhar de oito a dez horas por dia. Cerca de 500 páginas estão prontas, mas a história toda tem 700. Deve estar finalizada no meio do próximo ano, e impressa no fim de 2010 ou início de 2011." Thompson mantém um bom diário na internet, onde é possível acompanhar a evolução de seus desenhos: blog.dootdootgarden.com.


RETALHOS Autor: Craig Thompson
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Quanto: R$ 49 (592 págs.)




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