São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2000


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FESTIVAL DE GRAMADO
Do nariz de Macunaíma e de outros casos

PAULO JOSÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não era de hoje que andávamos juntos, eu mais Joaquim. Desde "O Padre e a Moça", minha primeira aventura na lanterna mágica chamada cinema, que eu gostava de ficar na sua oca em Ipanema (...). E foi naquela maloca que o herói Joaquim deu de não comer nem dormir, pulava cedo na ubá e se punha a maquinar uns causos. E de tanta maquinação nasceu seu Macunaíma, coisa boa de ler, tão perfeita, tão acabada que parecia que ia virar cinema, mesmo que ninguém o filmasse.
E eu adormecia e acordava sonhando a mesma coisa: brincar de ser aquele herói que fazia coisas de sarapantar. Grande Otelo virou Macunaíma preto, Dina Sfat, a Ci Mãe do mato, Jardel Filho, o Wenceslau Pietro Pietra, aliás o gigante Piaimã, comedor de gente, (...) e assim por diante.
E o Macunaíma branco? Tinha, não. Ou tinha, mas não tinha ainda de certeza mesmo. (...) Botei minha violinha no saco e segui acompanhando as trabucagens dos primos. Mas o nosso herói Joaquim andava desinquieto. Se dormia com o olho esquerdo, com o direito vigilava.
Com o coração apertado decidiu sair pelo Brasil afora campeando um alguém para seu Macunaíma branco, seguido por um séquito sarapintado de jandaias e araras vermelhas. (...) De A a Z todos os malazarteiros e burlantins entre 25 a 50 anos passaram pela sua frente, de fato ou imaginados. Quer dizer, todos menos eu, que estava ali, ao alcance da mão.
Passaram-se muitas luas e nada satisfazia o herói. Uma tarde estava ele aborrecido e silencioso quando o pássaro uirapuru pousou na sua cabeça, começou a cantar e o herói entendeu o que ele dizia. Joaquim ficou me olhando um tempo de um jeito que me deu vontade de dizer:
- Não me olha de banda que eu não sou quitanda, não me olha de lado que eu não sou melado.
Mas não disse. Aí ele me perguntou de golpe:
- Que me diz, perdiz? Topa operar o nariz?
Eu continuei parado, meio assim-assado, assuntando numa cisma assombrosa. E o herói, revirando os olhos de gosto com a minha atrapalhação, foi explicando que eu tinha dois narizes, inimigos um do outro: um, fino, se visto de lado, outro batatudo, se visto de frente. Irreconciliáveis!, ele disse. Difícil para aparecer na máquina de fazer fita.
- Se você ajeita isso a gente filma, parceiro.
- Sem nariz? Ora, vá desmamar jacu com alpiste, moço!
Saí batendo o pé, firme, para esconder a brabeza que tomou conta do meu coração narigudo (...).
E o herói saiu do sério de sua voz baixa e falou pra que todo mundo escutasse:
- Coração dos outros, seu nariz até que é bonitim e não atrapalha!!! Meus cuidados, vosmicê tem até o nariz do nosso herói, branco de lado, negro de frente e mameluco, mulato, cafuzo nos três quartos. Topas ser Macunaíma, parceiro?
Quis responder, mas cadê voz para falar? Nem precisei de boca. Estava todo faceiro, num mexe-mexendo pelo corpo todo que nem quando mulher faz cosquinhas na gente. E lá se foi fazer seu filme Joaquim Pedro de Andrade, herói de nossa gente!


Texto escrito pelo ator para o relançamento de "Macunaíma", em 99


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