São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2000


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MEMÓRIA
O riso de Grünewald sobrevive em seus escritos

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dentre os poetas brasileiros verdadeiramente importantes da segunda metade do século recém-passado, José Lino Grünewald, que morreu no último dia 26, aos 69 anos, era um dos menos conhecidos. Quem fosse capaz de associar seu nome a uma obra pensaria provavelmente em sua tradução das centenas de páginas dos árduos e complexos "Cantos", de Ezra Pound, enquanto aqueles dotados de boa memória se lembrariam do jornalista ativo nos anos 60 ou até mesmo de um dos fundadores do concretismo. Mas quase ninguém, nem mesmo os críticos profissionais, teria algo (de bom ou de ruim) a dizer a respeito de sua poesia.
José Lino não escreveu muita poesia, nem cuidou de mantê-la em circulação. Isso, aliás, aplica-se a todo o resto do que escreveu. Sua crítica literária, cinematográfica, seus minicontos etc., praticamente nada disso, depois de sair nos jornais dos anos 60/70 foi republicado. O resultado infeliz dessa falta saudável de preocupação com a fama é que mesmo os críticos e leitores interessados acabam subestimando o conjunto de uma obra original, variada e, sobretudo, inteligente.
Grünewald reuniu seu trabalho poético, incluindo o livro de estréia, "Um e Dois" (1958), e seus poemas que apareceram, com os de Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos e Ronaldo Azeredo, na célebre antologia do movimento de poesia concreta, a "Noigandres 5" (1962), num pequeno volume, "Escreviver" (Nova Fronteira, 1987). Descontados alguns dispersos publicados posteriormente e, com sorte, outros tantos (ou mais) inéditos em suas gavetas ou armários, os 45 textos escritos num período de 30 anos e ali reunidos constituem sua poesia completa. Não é muito em termos quantitativos. Só que, em decorrência do prazer que o poeta extrai das palavras e do senso de humor com que as trata, bem como do inesperado de suas idéias e da habilidade com que as equaciona, a história, em termos qualitativos, é outra.
José Lino vai do rebuscamento sintático de seus primeiros poemas (que têm um parentesco forte com os poemas contemporâneos de Décio Pignatari) à simplicidade de slogan dos poemas concretos e à síntese de haicais nada triviais. Afinal, embora se tenham escrito milhões de haicais no Brasil, contam-se nos dedos de uma mão aqueles que, em eficácia, equiparam-se a este (dos tempos do golpe militar): "marcha da família/ com deus pela liberdade/ masturbam-se hienas". Num espaço exíguo, seu livro é um verdadeiro mostruário de formas à disposição dos poetas, do verso metrificado e rimado ao livre, da composição cabralina ao soneto.
Em meio a tanta diversidade, as características que se impõem mais fortemente são humor e ironia. Veja-se, por exemplo, o brevíssimo "Serviço Público" : "bate ponto/ bate papo/ bate ponto". Ou "As Alienações 1": "nos conventos fala-se em Marx/ nas casernas fala-se em deus// entre a cruz e a espada paira deus/ entre a farda e a batina paira marx//a deus o que é de deus/ a marx o que é de marx// deus ex marxina". Ou ainda, e principalmente, o poema que começa com uma frase ininteligível, mas cheia de sugestões obscenas: "onã o putodor latera a moder dos rofates"; continua com outras tantas semelhantes e de tamanho igual, terminando com a frase por meio da qual se é levado a descobrir que todas as anteriores nada mais eram que combinações e recombinações das letras desta: "A ordem dos fatores não altera o produto".
Com José Lino Grünewald morre um pedaço importante da época que, dando à luz bossa nova, concretismo, cinema novo, neoconcretismo, tropicalismo etc., não apenas foi uma das mais criativas do país como segue sendo um exemplo e um ponto de referência para os dias de hoje. Para quem conheceu José Lino, um de seus traços mais marcantes era a gargalhada peculiar. Como no caso do gato de Cheshire, em "Alice no País das Maravilhas", aquele felino cujo sorriso sobrevive à sua desaparição, o riso do poeta, sob a forma de seus melhores escritos, continua entre nós, ou seja, resta, como ele mesmo o disse, "esta inútil melopéia/ De quem burila o texto e logo ri/ Do verbo que se quer visão e idéia".



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