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MEMÓRIA
O riso de Grünewald sobrevive em seus escritos
NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Dentre os poetas brasileiros
verdadeiramente importantes da segunda metade do século
recém-passado, José Lino Grünewald, que morreu no último dia
26, aos 69 anos, era um dos menos
conhecidos. Quem fosse capaz de
associar seu nome a uma obra
pensaria provavelmente em sua
tradução das centenas de páginas
dos árduos e complexos "Cantos", de Ezra Pound, enquanto
aqueles dotados de boa memória
se lembrariam do jornalista ativo
nos anos 60 ou até mesmo de um
dos fundadores do concretismo.
Mas quase ninguém, nem mesmo
os críticos profissionais, teria algo
(de bom ou de ruim) a dizer a respeito de sua poesia.
José Lino não escreveu muita
poesia, nem cuidou de mantê-la
em circulação. Isso, aliás, aplica-se a todo o resto do que escreveu.
Sua crítica literária, cinematográfica, seus minicontos etc., praticamente nada disso, depois de sair
nos jornais dos anos 60/70 foi republicado. O resultado infeliz
dessa falta saudável de preocupação com a fama é que mesmo os
críticos e leitores interessados
acabam subestimando o conjunto
de uma obra original, variada e,
sobretudo, inteligente.
Grünewald reuniu seu trabalho
poético, incluindo o livro de estréia, "Um e Dois" (1958), e seus
poemas que apareceram, com os
de Pignatari, Haroldo e Augusto
de Campos e Ronaldo Azeredo,
na célebre antologia do movimento de poesia concreta, a "Noigandres 5" (1962), num pequeno
volume, "Escreviver" (Nova
Fronteira, 1987). Descontados alguns dispersos publicados posteriormente e, com sorte, outros
tantos (ou mais) inéditos em suas
gavetas ou armários, os 45 textos
escritos num período de 30 anos e
ali reunidos constituem sua poesia completa. Não é muito em termos quantitativos. Só que, em decorrência do prazer que o poeta
extrai das palavras e do senso de
humor com que as trata, bem como do inesperado de suas idéias e
da habilidade com que as equaciona, a história, em termos qualitativos, é outra.
José Lino vai do rebuscamento
sintático de seus primeiros poemas (que têm um parentesco forte com os poemas contemporâneos de Décio Pignatari) à simplicidade de slogan dos poemas concretos e à síntese de haicais nada
triviais. Afinal, embora se tenham
escrito milhões de haicais no Brasil, contam-se nos dedos de uma
mão aqueles que, em eficácia,
equiparam-se a este (dos tempos
do golpe militar): "marcha da família/ com deus pela liberdade/
masturbam-se hienas". Num espaço exíguo, seu livro é um verdadeiro mostruário de formas à disposição dos poetas, do verso metrificado e rimado ao livre, da
composição cabralina ao soneto.
Em meio a tanta diversidade, as
características que se impõem
mais fortemente são humor e ironia. Veja-se, por exemplo, o brevíssimo "Serviço Público" : "bate
ponto/ bate papo/ bate ponto".
Ou "As Alienações 1": "nos conventos fala-se em Marx/ nas casernas fala-se em deus// entre a
cruz e a espada paira deus/ entre a
farda e a batina paira marx//a
deus o que é de deus/ a marx o que
é de marx// deus ex marxina". Ou
ainda, e principalmente, o poema
que começa com uma frase ininteligível, mas cheia de sugestões
obscenas: "onã o putodor latera a
moder dos rofates"; continua
com outras tantas semelhantes e
de tamanho igual, terminando
com a frase por meio da qual se é
levado a descobrir que todas as
anteriores nada mais eram que
combinações e recombinações
das letras desta: "A ordem dos fatores não altera o produto".
Com José Lino Grünewald morre um pedaço importante da época que, dando à luz bossa nova,
concretismo, cinema novo, neoconcretismo, tropicalismo etc.,
não apenas foi uma das mais criativas do país como segue sendo
um exemplo e um ponto de referência para os dias de hoje. Para
quem conheceu José Lino, um de
seus traços mais marcantes era a
gargalhada peculiar. Como no caso do gato de Cheshire, em "Alice
no País das Maravilhas", aquele
felino cujo sorriso sobrevive à sua
desaparição, o riso do poeta, sob a
forma de seus melhores escritos,
continua entre nós, ou seja, resta,
como ele mesmo o disse, "esta
inútil melopéia/ De quem burila o
texto e logo ri/ Do verbo que se
quer visão e idéia".
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