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ARIANO SUASSUNA
Uso de Palavras Estrangeiras
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
UMA CARTA
No dia 10 deste mês de julho,
o jornalista Cassiano Elek
Machado lembrou que, em 1981,
eu declarei que estava sentindo
necessidade de me afastar "da
monstruosa vaidade literária". E
indagou: "Como o senhor, que
lançou recentemente um CD com
seus poemas, que tem programas
de televisão no ar, que está escrevendo para jornal e trabalha em
ficções inéditas, tem domado essa
"vaidade'?".
Respondi que agora, na velhice,
aprendi a lidar melhor com os
monstros e fantasmas que tanto
me preocupavam na juventude.
Aprendi, inclusive, a rir deles; e,
sobretudo, a zombar de mim
mesmo, para não ser possuído pelo "demônio da vaidade" que torna os escritores tão insuportavelmente antipáticos.
Ora, recentemente houve, no
Recife, um Congresso de Jornalistas, do qual participei na qualidade de escritor avesso ao mundo
dos computadores. Falei para
uma platéia integrada em sua
maioria por jovens estudantes,
meu público predileto. E foi para
zombar de mim, mais do que das
pessoas que me criticam por meu
"arcaísmo", que declarei, ali: "Para mim, a humanidade se divide
em dois grupos: o dos que concordam comigo e o dos equivocados".
Faço referência a isso porque,
na semana que passou, andei relendo os artigos aqui publicados e
notei que neles quase que só fiz referência a cartas que me foram
enviadas por pessoas do primeiro
grupo. É tempo, então, de lutar
contra a vaidade, falando num
"equivocado", Yves M. Albuquerque, que recentemente me mandou uma carta cujos trechos principais transcrevo a seguir:
"Meu caro Ariano: Lendo seus
artigos, ouvindo suas palavras na
TV, encontro vários tópicos em
que discordo de sua opinião. Um
deles, em particular, me desperta
mais atenção: é o caso da "invasão"
da língua inglesa que, segundo
entendi, está ameaçando de morte a nossa flor do lácio. Acho sua
posição aí inteiramente exagerada e sem fundamento. Sua oposição ao uso de palavras em inglês é
flagrante, é aberta. E é aí que discordo do ilustre escritor. Ao contrario do grande mestre, não vejo
nisso ameaça à nossa língua vernácula, mesmo porque fato semelhante, e em muito maior amplitude, ocorreu e ocorre com a língua francesa, sem que uma voz sequer se levante em defesa da nossa língua".
Yves Albuquerque alinha várias
palavras francesas usadas em nosso dia-a-dia, entre as quais "restaurant", "filet", "manchette",
"garçon", "vernissage", "écharpe", "tricot" etc. Diz que, em minhas "andanças pelos nossos centros de cultura popular", eu devo,
já, ter notado "a presença e o perigo que representa a "invasão" francesa nas quadrilhas de São João
tão típicas da nossa tradição popular e cujos dançarinos executam passos de dança sob o comando de alguém cujas palavras
não entendem porque são pronunciadas em francês". Ajunta,
em tom afetuosamente irônico:
"Desconheço quem tenha protestado patrioticamente contra tal
intromissão". E conclui: "O que
nós precisamos, meu caro Ariano, não é ficar preocupados com a
invasão de outras línguas, mas
ajudar a buscar solução para os
nossos graves problemas, como a
fome, a miséria, o analfabetismo e
outras mazelas que nos afligem.
Se o Brasil sobreviveu a 500 anos
de desgoverno e bandalheira, não
será meia dúzia de vocábulos estrangeiros que vão acabar com
ele".
Uma vez que Yves Albuquerque
discorda de mim, não levará a mal
que eu, de minha parte, passe a
alinhar os motivos pelos quais
não concordo com sua carta, tão
simpática mas tão "equivocada".
Em primeiro lugar, gostaria de
dizer que, talvez por ser escritor,
não considero a defesa e a preservação do nosso idioma um problema sem importância. Foi levando tal fato em conta que aqui
publiquei, em 25 de abril deste
ano, um artigo no qual dizia: "Sei
perfeitamente que um idioma é
uma coisa viva e pulsante. Não
queremos isolar o português, que,
como acontece com qualquer outra língua, se enriquece com as palavras e expressões das outras.
Mas elas devem ser adaptadas à
forma e ao espírito do idioma que
as acolhe. Somente assim é que
deixam de ser mostrengos que
nos desfiguram e se transformam
em incorporações que nos enriquecem".
Depois, lembraria que, sendo
uma língua românica, o Francês é
muito mais próximo do Português, de modo que suas palavras e
expressões são facilmente adaptadas à forma e ao espírito da nossa
língua. Por isso, nunca estranhei o
uso de palavras como as citadas
por Yves Albuquerque e que sempre vi como restaurante, filé,
manchete, garçom, vernissagem, echarpe, tricô etc.
Quanto às quadrilhas, não são
manifestações da nossa cultura
popular. A quadrilha é uma dança
européia que, no século 19, passou para os salões da aristocracia
e da classe média do Brasil. Não
pode, portanto, ser colocada ao
lado de espetáculos como o Cavalo-Marinho ou o Auto de Guerreiros, estes, sim, populares, e que,
portanto, não adotam nenhuma
palavra estrangeira.
Finalmente, pedindo desculpas
pela brincadeira de ter incluído
Yves Albuquerque no grupo dos
"equivocados", gostaria de dizer-lhe que minha luta em defesa do
Português é entendida por mim
como parte indispensável da outra, maior: a luta contra a entrega
do nosso território, da nossa economia, da nossa identidade cultural. Porque para mim, como escritor, é por aí que a luta maior começa.
(Continua na próxima semana.)
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